Ser uma igreja dinâmica e ousada no testemunho do Evangelho

Paulo Ueti
15 min readMay 13, 2020

… Te seguirei por onde fores

Meditação feita para um concílio da Diocese Anglicana de Brasilia.

Gostaria de começar essa meditação orando com todas vocês:

O Espírito do Senhor seja contigo.

Espírito de amor, liberta-nos do ódio e da violência, socorre-nos de nós mesmos; protege-nos das noites sem estrelas; cura-nos da opressão; afasta-nos do medo e da covardia.

Acorda-nos e faz-nos profetas e profetisas do teu Reino, que é feito de amor, bondade e compaixão. Amém. [i]

O Brasil geme e sofre dores e violências que desumanizam. No Brasil e na igreja vivemos tempos sombrios de medo, ódio e divisões. Tudo isso é escândalo (pedra de tropeço) e nos convoca à or(A)ção como o corpo de Cristo que revela o Reino e inaugura um novo tempo (kairos).

A experiência da vida cotidiana, o reconhecimento que essa experiência “fala” e a escuta de Deus a partir dela são fatores fundantes de nossa espiritualidade cristã que nos leva ao discipulado intencional de Jesus, o Cristo.

Duas das mais fortes imagens do compromisso POR AMOR encontramos nesse texto do concilio de Lc 9:57–62 e na história de Rute (cf. Rt 1:15–18), sempre na certeza que mesmo a ingratidão e o pecado não afastam Deus de nossa presença e caminhos (cf. Os 1–3; Os 11:1–9 e Rm 8:31–39).

O seguimento de Jesus é exigente e não é possível ser feito sozinha. Precisamos da comunidade e de ajuda sempre. Por isso somos um corpo, que deveria permanecer indivisível, apesar da necessidade fundamental e existencial da diferença e do conflito. Esse seguimento, que na Comunhão Anglicana estamos nominando de Discipulado Intencional, é caracterizado por “manter-se sempre em movimento, no caminho”. É uma jornada, é uma viagem que precisamos ESCOLHER fazer juntas, assim vamos mais longe e com mais saúde, garantindo a experiência da salvação cotidiana, graça e dom de Deus.

Esse caminho para nós, pessoas anglicanas, também é marcado pela presença e graça da diversidade. Somos cotidianamente, por fé e razão, chamadas a CONVIVER. E essa convivência é intrinsecamente processo de aprendizagem e desaprendizagem, é processo de adquirir coisas e experiências novas, mas também de desapegar de verdades, visões de mundo e bagagem cultural para que haja espaço para a surpresa e a novidade do caminho a frente.

Por isso o discipulado intencional é exigente e as vezes duro. Mas, mesmo não conseguindo fazê-lo na sua plenitude, afinal somos nascidas em pecado, nascemos na iniquidade (Rm 5–7; Sl 51), temos a certeza, ou deveríamos ter, de que só na história cotidiana (Deus encarnou-se na história) e no movimento, seguimento, jornada com Jesus é que a conversão é possível, só na relação é que a salvação pode ser reconhecida e apreciada.

Marcas da Missão: encarnação de Deus e missão no mundo

A Comunhão Anglicana assume a missão de Cristo nas 5 marcas da Missão:

1. Proclamar as boas novas do reinado de Deus

2. Ensinar, batizar e nutrir os novos crentes

3. Responder às necessidades humanas com amor

4. Procurar a transformação das estruturas injustas da sociedade, desafiar toda espécie de violência, e buscar a paz e a reconciliação

5. Lutar para salvaguardar a integridade da Criação, sustentar e renovar a vida da terra

O texto de Lucas, tema do Concilio da Diocese Anglicana de Brasília para 2017, lembra o quão difícil é sequer escutar o significado de Missão e ainda mais assumir as suas consequências. Esse texto (Lc 9:57–62) está colocado dentro do contexto da partilha que Jesus quer fazer de SUA missão e dos resultados dela (Lc 9:1–56: bom texto para avaliar o nosso lugar em relação a missão de Deus neste lugar do mundo). Ele já havia tentado por duas vezes dizer (e dizendo pedir solidariedade e “ombro”) para as pessoas mais próximas que a cruz é parte do caminho e que a violência a ser sofrida precisa ser integrada no caminho que ele escolheu. E, com isso, que Ele (Jesus) precisava de amigas/os, pessoas fiéis, precisava certamente de carinho e companhia nessa jornada (estamos sendo companhia umas pras outras, uns pros outros na dureza da vida?). Os discípulos mais próximos, de acordo com os evangelhos, e todos homens, estavam preocupados com eles mesmos e com desejos violentos de assumir o poder. Parece que eles não queriam “outro mundo possível”, mas assumir o lugar dos opressores naquele mundo “abominável”.

Seguir Jesus, modelo de espiritualidade

Os Evangelhos mostram que o próprio Jesus delineou a necessidade e a exigência do seguimento. É parte fundamental do seguimento de Jesus proclamar as Boas Novas do Reinado de Deus (Marca da Missão nº 1). Isso implica em entrarmos em colisão com as boas novas do “mundo”. É um caminho de conflito e tensão muitas vezes. As boas novas do reino serão sempre boas novas. Mas muita gente vai recebe-las como “má noticia”. Apesar disso é nosso dever continuar proclamando. Continuar sendo profetas e profetisas neste mundo distorcido em que nós estamos vivendo. É um chamado para sermos nós mesmas uma “parábola” do Reino. Não devemos reproduzir o “jeito” do mundo que oprime, é violento e desumaniza. “Entre vós, não deverá ser assim…” (cf Lc 22:24–27). A Boa Nova de Jesus é noticia de justiça, inclusão, carinho, solidariedade, relação amorosa incondicional.

Estamos usando nossas vozes e corpos para isso? Nossa interpretação bíblica e nosso “senso” moral ajuda a proclamar justiça e inclusão? Que boas novas estamos proclamando nesta região e que boas novas ainda precisam ser proclamadas?

É também preciso ser “batizado (Marca da Missão nº 2) no Espírito Santo” (cf Mc 1:1–15 — particularmente o v. 6–8. É preciso “nascer de novo, nascer do alto para reconhecer o Reino de Deus (cf. Jo 3:3–8). Batizar-se, literalmente, é mergulhar, submergir. É ser inserida por inteiro em um novo caminho, projeto, tornar-se uma nova pessoa, pois proclamamos junto com Paulo que “já não sou eu mas o Cristo que vive em mim” (cf. Gl 2:3). Batizar-se é símbolo da morte para o pecado. Ele não tem mais poder sobre nós. O pecado não tem mais poder que a graça de Deus (cf. Rm 6:1–14). Assumir o Batismo é reconhecer que nada pode nos separar do amor de Deus (cf. Rm 8:31–39). E é bom lembrar que o Espírito Santo é sempre voz discordante com o “mundo” e é vento impetuoso e fogo ardente que nos mantém em movimento constante e desarranja “o mundo”.

Batizar novos membros implica em continuar o processo de formação e constante avaliação do caminho (o caminho da conversão cotidiana — sempre perguntar se continuamos no caminho certo e usando a metodologia adequada — Marca da Missão nº 2).

Temos nos esforçado para “batizar” mais gente, ou seja, ter mais gente ao nosso lado lutando pela vida, experimentando o amor e a graça de Deus e fazendo de suas vidas uma parábola disso? As pessoas que se tornam membros das nossas comunidades e fé também mudam de vida e de mentalidade? Estamos trabalhando na formação, na liturgia e oferecendo uma espiritualidade que construa menos ódio, exclusão e julgamentos? Que precisamos fazer ainda? Que sucessos podemos celebrar hoje?

Considerando com atenção esses chamamentos de Jesus para segui-lo, vemos que se caracterizam por sua singular radicalidade e por sua dupla finalidade: estar com ele e assumir uma missão (cf. Mc 3:13–15; Mc 1:17). Mas não se pode olhar para trás quando se põe a mão no arado, tem que deixar os mortos enterrarem seus mortos, tem que abandonar ou rever os laços consanguíneos (minha verdadeira família[ii] é quem faz a vontade de meu Pai); tem que largar tudo (pai, barco, lugar geográfico assumindo o risco do caminho sem nada). Difícil, as vezes desanimador. Mas necessário. Para entrar num caminho novo devemos estar dispostas a largar algo do presente para que novas coisas, experiências, conhecimentos, culturas e projetos possam tomar lugar. É um movimento natural, quando nos permitimos aprender, apreciar, contemplar sempre vamos desaprender algo, mudar de opinião e até mesmo de caminho.

Para responder às necessidades humanas com amor (Marca da Missão nº 3), Lucas apresenta uma parábola (a do Samaritano) revolucionaria e desconcertante. Numa articulação literária brilhante, Lucas nos apresenta Jesus invertendo não só as palavras, mas a própria lógica do seguimento do mandamento do amor. Jesus, ao final da parábola pergunta: quem foi o próximo da pessoa que caiu nas mãos dos assaltantes? (v. 36). O próximo deve, então, necessariamente ser entendido não mais a partir do crente (e de sua crença),

mas sim a partir do contexto, das condições de necessidade e sofrimento e também da escolha que fazemos: onde decidimos ir, com quem decidimos estar, onde estão nossos pés, coração e mente?

Jesus anuncia assim que o desafio não é descobrir quem é nosso próximo para depois o amarmos, mas sim nos fazermos próximos de quem necessita, falar junto com quem perdeu a voz ou foi silenciado, estar/falar junto de quem está caída na beira da estrada, como resultado do amor de Deus que experimentamos. O próximo deixa de ser as que acreditam como eu, pensam como eu, pertencem ao mesmo grupo que o meu. O próximo se torna justamente aquela pessoa que é diferente de mim, desconhecida, numa diferença desigual que a coloca numa situação de sofrimento, violência e, eventualmente, morte. E aponta para o imperativo da ação imediata e pública, mesmo que isso signifique enfrentar os paradigmas estabelecidos e as normas morais praticadas em seus contextos. Desafiar o que é estabelecido é um dos chamados que as pessoas cristãs devem atender.

Que trabalhos sociais de transformação da realidade estamos envolvidas e podemos celebrar? Como estamos lidando com os desafios e as diferenças em nossos ambientes? Estamos abrindo nossos corações, olhares, ouvidos e corpos para estar junto com quem mais necessita, sem julgamentos morais ou patrulhamentos ideo-teológicos?

A ação destes personagens converge para a pessoa samaritana. Três dos nove versículos do relato são dedicados a descrever a dinâmica de cuidado do samaritano para com o homem caído:

Certo samaritano, em viagem, porém, chegou junto dele, viu-o e moveu-se de compaixão. Aproximou-se, cuidou de suas chagas, derramando óleo e vinho, depois colocou-o em seu próprio animal, conduzindo-o à hospedaria e dispensou-lhe cuidados. (v. 33s)

Os dois primeiros verbos (chegou e viu-o), retém a fórmula anterior do sacerdote e do levita. A diferença do samaritano começa quando esse se move de compaixão. Jesus se “moveu de compaixão” inúmeras vezes. A compaixão provoca movimento concreto e excêntrico, para fora de mim mesmo e do meu contexto, da minha zona de conforto. Mexe com meu bolso (normalmente chamamos hoje de “responsabilidade cristã). Esse primeiro movimento, um movimento de compaixão e misericórdia, desencadeia uma série de ações, de cuidados, quem completam a matemática (e simbólica!) cadeia de sete verbos (mover, aproximar, cuidar, derramar, colocar, conduzir, dispensar)[iii].

Lucas, ao apresentar o caminho de Jesus como um caminho de seu seguimento e de amor ao próximo, de misericórdia, nos convida (convoca) a fazer de nossa missão uma missão de cuidado, com outras pessoas, com a gente mesmo e com a natureza. Fazer da mensagem de Jesus ações, e não somente palavras ou discursos. A Palavra de Deus, que é Jesus e sua mensagem, deve se traduzir em ações, verbos: trata-se de sofrer junto as pessoas caídas na beira da estrada, e cuida destes/as, recobrando-lhes a vida (ressuscitando). Assim também quando a natureza geme e chora e espera pela redenção.

Espiritualidade do seguimento: seus traços fundamentais

A singular radicalidade dos chamados de Jesus concretiza-se na exigência de obediência absoluta ou de entrega incondicional que deverá articular-se historicamente em uma série de renúncias radicais. É efeito dominó. Na realidade, torna-se necessário renunciar a tudo para fixar bem os sólidos cimentos do seguimento real (cf. Lc 14:28–33; Mt 13:44–46). O que se trata, em definitivo, é de renunciar a tudo que possa impedir o seguimento a Jesus e de colocar-se inteiramente ao serviço do Reino. Temos que ser UM (de coração unificado — centrados — não dispersos):

- renúncia ao dinheiro e aos bens materiais deste mundo (cf. Mt 6,24; Lc 18,22).;

- renúncia ao apego a nós próprios, à própria vida (cf. Mt 10, 39,e 16,24 e par.; Jo 12,24); Mt 10,39 e 16,24.

- renúncia à instalação cômoda (cf. Lc 9,57–58);

- renúncia às vinculações familiares que possam impedir ou atrapalhar o seguimento (cf. Lc 9,59–62; Mt 10,35,35–38 e par.)

Com razão pode-se dizer que este modo de Jesus chamar a seu seguimento nos confronta conosco mesmas e com o estado atual da vida cotidiana. Estar com Jesus exige um desapego que não estamos acostumadas a viver. Não é por acaso que os relatos de chamado e, especialmente o bloco central do Evangelho de Lucas e os primeiros capítulos de Atos dos Apóstolos, estão repletos dessa discussão que gira em torno do desapego para a missão, do abandono para o Reino.

“A espiritualidade é um caminhar em liberdade segundo o Espírito de amor e de vida. Essa caminhada tem seu ponto de partido em um encontro com o Senhor… o encontro é marcado pela iniciativa divina.” [iv]

Jesus convida as pessoas que o seguem a estarem com Ele (cf. Mc 3, 14), a manterem-se ao seu lado (cf. Lc, 22, 28), a partilharem seu estilo próprio de vida, itinerante e desinstalado (cf. Mc 6, 8ss e par.; Lc 9, 57 -58), e a seguirem em todo momento o seu exemplo (cf Jo 13, 15; 14,6). Ele chama para perto para enviar para longe. O seguimento de Jesus implica, em primeiro lugar, a comunhão com Ele (na sua vida, sofrimento, morte e ressurreição), “assemelhar-se a Ele”, ter suas mesmas atitudes e sentimentos (cf. Fil 2,5), ser santos como Ele foi (cf. IPe 1,15–1"6), proceder como Ele procedeu (IJo 2, 6), seguindo suas pegadas a todo momento (cf. IPe1,21–22). E em segundo lugar ir ao mundo para expressar isso em palavras (proclamar um batismo, uma boa nova) e ações (cuidar, defender os direitos, partilhar recursos, construir a paz e a reconciliação).

Para a pessoa que segue Jesus, esse estar com Ele e comungar com seus sentimentos e atitudes de vida é inseparável de seu ser enviado à missão de ser “pescadores de homens e mulheres” (cf. Mc 1, 17 e par.), de proclamar com palavras e sinais que o Reino já é chegado como presença salvífica e libertadora que cura os enfermos, expulsa os demônios[v], liberta os cativos e é bem-aventurança para os pobres (cf. Lc 9, 1–6; 10,2–12; Mt 10, 1–16; Mc 6, 7–13) — marcas da missão.

O seguimento é essencialmente tarefa, encargo, missão, prática salvífico-libertadora, comunhão com a causa de Jesus de servir ao Reino. Exige, inclusive, a disponibilidade para participar também em seu próprio destino, assumindo a inevitável conflitividade e perseguição, isto é, carregando a cruz até ao fim (cf. Mc 8, 35; Mt 10, 16–18.21–25.38–39; Lc 14,27; Jo 12,24–26). É o chamado para procurar a transformação das estruturas injustas da sociedade, desafiar toda espécie de violência, e buscar a paz e a reconciliação (Marca da Missão nº 4).

Nos evangelhos há uma insistência em repetir para a comunidade o fato do destino de Jesus ser a cruz. Destino não porque ‘já estava escrito’, mas porque essa era e é o resultado de todo aquele/a que se compromete com a aliança. A cruz é consequência inalienável da vida cristã. Já desde a encarnação de Deus em Jesus temos esse anuncio estabelecido. Já desde o seu nascimento Jesus incomodava os poderosos religiosos e políticos de sua época. Não era necessário ser muito adivinho para perceber que a consequência da vida de Jesus seria o sofrimento, a exclusão e a cruz.

Como caracterizar a espiritualidade que tem como experiência — fonte o encontro com Deus que acontece, sempre pela força do Espírito, no seguimento de Jesus de que estamos falando? Quais são os traços que especificam uma espiritualidade que está vinculada ou que tem sua força inspiradora na solidariedade beligerante com a causa justa dos pobres, vivida com o espírito das bem-aventuranças evangélicas no horizonte de esperança no qual se situa a ressurreição?

A espiritualidade não pode ser algo que aliena da realidade que nos rodeia mas, ao contrário, vincula -se estreitamente a ela, até ao ponto de ter como pressuposto fundamental a honradez e a fidelidade para com a verdade do real e a mais radical de suas exigências: sua transformação libertadora (cf. Rom 8, 18–24). A espiritualidade que tem por premissa fundamental a escuta e a obediência será chamada por muitos místicos e teólogos/as de espiritualidade que vem de baixo[vi].

Esta consciência espiritual revela a premissa fundamental da teologia da revelação que é a que Deus sempre toma a iniciativa. Deus vem visitar o seu povo e escolhe falar com ele diretamente. Fez isso através dos profetas antigamente (cf. Hebreus) e depois através de seu filho Jesus. Para João essa horizontalidade koinonica é critério estruturante da fé no Deus da vida. “Quem diz que ama a Deus que não vê e não ama seu irmão que vê é um mentiroso” (1Joao). Deus é amor, é relação de amor. É só ali que podemos perceber e entrar no mistério da sua presença e graça.

Para escutar Deus é necessário assumirmos nossa humanidade e nossa conexão natural com a natureza, também criação de Deus em harmonia com a humanidade, nunca em submissão e dominação, seguindo o exemplo dele. Encarnou-se na história e num lugar como carne, como gente, como ser humano. Não é pecado ser gente. As fraquezas são só fraquezas, não “defeitos de fabrica” que precisam ser ‘consertados’. Fazem parte da nossa humanidade, do nosso jeito de estar no mundo. E é só assumindo esta realidade que vamos poder falar de uma realidade transcendental. A cruz é o maior paradoxo que podemos encarar na tradição cristã. A Cruz é ao mesmo tempo sinal de sofrimento/morte e vida/ressurreição. Como pode ser isso? Como pode a fraqueza e a derrota se transformar em fortaleza e vitória?

Aqui não se trata apenas de ouvir a voz de Deus naquilo que eu penso e sinto, nas minhas paixões e enfermidades… também não se trata de apenas subir a Deus descendo à minha realidade. Trata-se de estar, a partir das minhas possibilidades, disponível a um estado de relação. Estar dispostos e dispostas a ‘dar um pulo na noite’ (cf. João da Cruz), a viver na insegurança e nas incertezas, num estado de dependência desconfortável. Trata-se de estar dispostos/as a ir além das palavras, ou seja, de dialogar. E o primeiro diálogo no encontro com o sagrado é o dialogo com as nossas fraquezas. Evagrio Pontico vai dizer que se queres conhecer a Deus tens que conhecer a ti mesmo. A tradição monástica vai nos ensinar (o que a Bíblia já nos disse muitas vezes) que a verdadeira oração surge das misérias e fraqueza, não das virtudes.[vii]

Aqui cumpre um papel fundamental à catequese e à liturgia. São dois aspectos da vida da Igreja que, juntamente com a organização e pratica da comunidade, devem nos levar a conhecer a Deus e não simplesmente a cumprir os ritos que supostamente nos levariam a ele. O conhecimento (ou melhor o reconhecimento) de Deus é feito quando nós nos deparamos com ele do jeito que nós somos. A liturgia, em especial, é o espaço privilegiado da celebração da verdade, da memória (do não esquecimento). Mas não de qualquer verdade, mas daquela que é a Verdade de Deus, conforme já citei acima. É o lugar onde o símbolo e o rito, o espaço e a palavra falada, tornam-se não mais instrumento simplesmente de acesso ao sagrado, mas tornam-se expressão do amor apaixonado que irradia de Deus e atinge a todo o mundo. Por isso continua sendo urgente e fundamental escutar os clamores de TODA a criação que geme e sofre dores de parto esperando pela redenção (cf Rm 8:26). O orgulho violento e usurpador vindo de uma teologia antropocêntrica (onde o ser humano é o centro de tudo) prejudica a vida plena e ataca a casa comum (a terra — a oikoumene). Por isso permanece fundamental lutar para salvaguardar a integridade da Criação, sustentar e renovar a vida da terra (Marca da Missão nº 5).

Como podemos ajudar a comunidade onde vivemos a se descobrir necessitada de Deus e de libertação? Como estamos nos envolvendo com ações que cuidem do meio ambiente onde vivemos? Que fazemos com nossos lixos? Faz parte do ensino bíblico nas igrejas economizar água, separar lixos, educar outras pessoas para a limpeza e cuidado com a natureza? Estamos influenciando nossos governos o suficiente para impedir o avanço do efeito estufa, que provoca mudanças climáticas catastróficas, as quais já experimentamos?

A experiência do Reino e da Misericórdia de Deus, portanto da Revelação de Deus em Jesus, sempre vai nos recordar que a vida, sofrimento, alegrias, morte e ressurreição dele foi uma vida de excentricidades, de sempre para fora de si mesmo.

Que belos e infinitos são Teus nomes, ó Senhor Deus.

Tu és chamado pelo nome

de nossos desejos mais profundos.

As plantas, se pudessem orar,

invocariam nas imagens das suas flores mais belas

e diriam que tens o mais suave perfume.

Para as borboletas Tu serias uma borboleta,

a mais bela de todas, as cores mais brilhantes,

e o teu universo seria um jardim…

Os que estão com frio Te chamam Sol…

Aqueles que moram em desertos

dizem que Teu nome é Fonte das Águas.

Os ófãos dizem que Tens o rosto de Mãe…

Os pobres Te invocam como Pão e Esperança.

Deus, nome de nossos desejos…

Tantos nomes quantas são nossas esperanças e desejos… Poema. Sonho. Mistério. [viii]

[i] BENTO, I. Deus amor. In: RUBEM, Alves (org.). CultoArte: celebrando a vida — pentecostes. Petrópolis: Vozes, 2002, pág 30.

[ii] Aqui vale a pena sublinhar a necessidade de se rediscutir o conceito de família na tradição crista.

[iii] No próximo versículo (v. 35), repete-se a matemática dos sete verbos: “No dia seguinte, tirou dois denários e deu-os ao hospedeiro, dizendo: Cuida dele, e o que gastares a mais, em meu regressar te pagarei”

[iv] Gutierrez, Gustavo. Beber em seu próprio poço. Pág. 50. Ed. Loyola. São Paulo.2000.

[v] Aqui vale a pena ressaltar que há uma diferença entre “demônio” e “diabo”, que em outra oportunidade poderemos retomar.

[vi] Ver obras de Anselm Grün.

[vii] Ver as obras de Anselm Grün.

[viii] RUBEM, Alves. In: Rubem, Alves (org). CultoArte: celebrando a vida — advento/natal/epifania. Petrópolis: Vozes, 1999, pág 17.

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Paulo Ueti

Bible Scholar, Anglican Alliance Facilitator, Researcher on Biblical Studies, living in Brasilia — Brazil most of the time, traveling a lot.