Para uma Justiça de gênero
Reimaginando a religião, a raça, o gênero e a sexualidade em Atos 8:26–40
Sarojini Nadar, Paulo Ueti e Johnathan Jodamus
Sarojini Nadar, que se formou como biblista, é titular da Cátedra de Pesquisa Sul-Africana Desmond Tutu (SARChi) em Religião e Justiça Social na Universidade do Cabo Ocidental. (SARChi) em Religião e Justiça Social na University of the Western Cape.
Paulo Ueti é um biblista do Novo Testamento do Brasil. Ele é o facilitador regional para a América Latina e o Caribe e assessor teológico global da Aliança Anglicana (Escritório Global da Comunhão Anglicana, Londres, Reino Unido)
Johnathan Jodamus é um biblista do Novo Testamento no Departamento de Religião e Teologia da Universidade do Cabo Ocidental
Resumo
Este artigo reflete sobre nossas experiências de facilitação dos estudos bíblicos para a reunião pré-assembleia da Comunidade Justa de Mulheres e Homens para a ]]ª Assembleia do Conselho Mundial de Igrejas em agosto e setembro de 2022. Trabalhando com o texto de Atos 8:26–40, comumente conhecido como o batismo de um eunuco etíope, o artigo reflete criticamente sobre nossa própria facilitação, bem como sobre o feedback dos participantes do workshop. Ele começa com uma descrição de como os estudos bíblicos foram planejados e desenvolvidos, com base em uma adaptação do método da leitura popular da Bíblia. Em seguida, reflete sobre como os participantes trouxeram três aspectos da identidade do eunuco — gênero, raça e religião — para abordar os desafios múltiplos e interseccionais que as comunidades de fé enfrentam em seus diversos contextos locais. As percepções dos participantes e a facilitação do estudo bíblico revelaram a importância contínua das experiências incorporadas e vividas no processo de interpretação bíblica. Este artigo contribui para as reflexões em andamento sobre os fundamentos pedagógicos e transformadores do estudo bíblico contextual como um método de engajamento da fé em diversos contextos ecumênicos.
Palavras-chave
estudo bíblico contextual, gênero, raça, religião, identidade, batismo, Conselho Mundial de Igrejas
Este é um artigo publicado originalmente em inglês de acesso aberto sob os termos da Licença Creative Commons Attribution-NonCommercial, que permite o uso, a distribuição e a reprodução em qualquer meio, desde que o trabalho original seja devidamente citado e não seja usado para fins comerciais- © 2023 The Authors. The Ecumenical Review publicada por John Wiley & Sons Ltd em nome do Conselho Mundial de Igrejas — The Ecumenical Review. Volume /5 — Número 1 — Janeiro de 2023 — https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/erev.12761
Quando fomos convidadas para facilitar os estudos bíblicos para o Programa do Conselho Mundial de Igrejas “Comunidade Justa de Mulheres e Homens” reunidos antes da 11ª Assembleia do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) em 2022 em Karlsruhe, Alemanha, soubemos imediatamente que, embora o foco desse programa fosse a justiça de gênero, seria importante para nós, como estudiosas do Sul global, ampliar as interseções de gênero com raça, etnia, classe, sexualidade e religião.[1] Nosso compromisso com uma interpretação bíblica que enfrente e sinalize essas interseções encontrou relações duradouras com o texto de Atos 8:28–40 (comumente conhecido como a narrativa do batismo do eunuco etíope) e, portanto, esse foi o texto escolhido.
Também ficou imediatamente claro para nós que o método de estudo da Bíblia que usaríamos seria o estudo bíblico contextual (EBC). O ECB é “um estudo participativo de textos específicos da Bíblia, que traz as perspectivas tanto do contexto da pessoa que lê quanto do contexto da Bíblia para um diálogo crítico, com o objetivo de promover conscientização e transformação”.[2]2 Nossa experiência coletiva — como biblistas treinados e facilitadores de estudos bíblicos em comunidades de fé locais, globais e ecumênicas — bem como nosso compromisso com a política e a ética da interpretação bíblica transformativa tornaram essa escolha óbvia para nós.
O método EBC foi bem documentado. O Centro de Estudos Bíblicos (CEBI) no Brasil estabeleceu essa forma de leitura popular e comunitária da Bíblia no final da década de 70, e ela foi adotada e promovida de várias maneiras pelo que hoje é o Ujamaa Centre For Community Development and Research (Centro Ujamaa de Desenvolvimento e Pesquisa Comunitária) em Pietermaritzburg, África do Sul, em 1989.[3] Nos anos seguintes, biblistas como Sarojini Nadar[4] expandiram a teorização da ECB, conceituando o método como “Com 5 Cs” (em inglês) que no português fica: comunidade, contexto, criticidade, conscientização e mudança.[5] Alguns anos depois, em 2015, refletindo sobre o trabalho do Ujamaa e do CEBI, Gerald West ajustou e adaptou os Cs, trocando a conscientização de Nadar por colaboração e acrescentando um sexto C: contestação[6]. Está além do escopo deste artigo aprofundar-se em todos os recursos e valores da metodologia ECB. O que é importante observar é que, como facilitadores, estávamos empenhados em incorporar muitos desses elementos sobrepostos ao paradigma no qual estávamos trabalhando.
Comunidade
O EBC é convencionalmente facilitado com grupos pequenos onde é mais fácil interagir mais pessoalmente, geralmente dentro de um contexto de comunidade de fé compartilhada de cerca de 10 a 30 pessoas, muitas vezes várias vezes durante um dia inteiro ou até mesmo muitos dias. No entanto, tivemos cerca de duas horas para facilitar um estudo bíblico com 200 a 250 participantes de várias origens linguísticas, localizações geográficas, afiliações eclesiais, convicções políticas, identidades de gênero, orientações sexuais, qualificações educacionais, classes sociais e habilidades físicas. A ECB trabalha dentro de um modelo pedagógico de facilitação: em vez de ensinar, o processo deve ser interativo para permitir o aprendizado e o compartilhamento comunitários engajados. Por isso, tivemos que adaptar o método para atender a um número maior de participantes. Nós nos dividimos pelo auditório, tentando dar ao maior número possível de pessoas a oportunidade de ter suas vozes ouvidas.
Considerando que o método do ECB é bastante flexível e fluido, tivemos que ser bastante intencionais e diretas em nossa facilitação para criar intencionalmente uma comunidade de leitores naquele momento específico (diferente das comunidades orgânicas pré-existentes). Para isso, preparamos estratégias de como gerenciar um grupo tão grande e diversificado. A estratégia de cantar juntas foi útil não apenas para fazer com que as pessoas parassem de falar em seus grupos e retornassem às discussões em plenário, mas também para incentivar a coesão e o pertencimento ecumênico compartilhado, especialmente após discussões controversas em pequenos grupos, onde as pessoas poderiam manter ideias bastante fortes e divergentes. No início do processo, Paulo explicou que, quando começamos a cantar alguns versos do hino curto “Take, O Take Me as I Am”, isso era um sinal para que os grupos voltassem às discussões em plenário. A escolha do hino foi apropriada, considerando os temas do estudo bíblico. Veja as Figuras 1–4.

Outra maneira de estabelecer senso de comunidade é ler o texto em voz alta em conjunto. O ato de ler um texto em conjunto com o propósito de estudar é diferente de ouvir a leitura em um culto tradicional da igreja, em que a pessoa está se preparando para ouvir um sermão. A ideia por trás da leitura do texto em voz alta é lê-lo com os olhos frescos e em conjunto. Como leitores de textos bíblicos, muitas vezes impregnamos o texto com interpretações recebidas que vão desde histórias para dormir e narrativas da escola dominical até sermões dominicais e até mesmo treinamento em seminários e universidades. Ler o texto em voz alta com uma comunidade de leitores ajuda a ouvir um texto de novo.
Como o ECB trata da conscientização e da sensibilização para as injustiças, definimos o tom no início, concentrando intencionalmente a atenção do público na injustiça linguística. Ler o texto em voz alta quando se está lendo com pessoas que compartilham o mesmo idioma é bastante fácil. No contexto da assembleia, esse não foi o caso. Somente nessa reunião, provavelmente tivemos mais de cem idiomas representados, sem contar os principais idiomas usados na assembleia — inglês, francês, espanhol e alemão. Pedimos a uma das participantes que lesse o texto em Bemba (idioma falado na Zâmbia). Como não tinha sua Bíblia em Bemba, ela teve de pedir ao marido que lhe enviasse uma foto do texto por e-mail, pois não havia uma versão on-line do texto em Bemba. Esse foi nosso primeiro momento de conscientização e sensibilização. Conseguimos chamar a atenção dos participantes para o privilégio linguístico e como esses privilégios estão tão arraigados que mal os percebemos. Também foi importante evocar essa língua desconhecida no espaço para nos lembrarmos do domínio dos idiomas coloniais.

Depois que a participante leu o texto em Bemba, lemos novamente o texto em voz alta da New Revised Standard Version (NRSV), em inglês, a língua franca do workshop.
Em inglês no original lido:
Then an angel of the Lord said to Philip, “Get up and go toward the south to the road that goes down from Jerusalem to Gaza.” (This is a wilderness road.) So he got up and went. Now there was an Ethiopian eunuch, a court official of the Candice, queen of the Ethiopians, in charge of her entire treasury. He had come to Jerusalem to worship and was returning home; seated in his chariot, he was reading the prophet Isaiah. Then the Spirit said to Philip, “Go over to this chariot and join it.” So Philip ran up to it and heard him reading the prophet Isaiah. He asked, “Do you understand what you are reading?” He replied, “How can I, unless someone guides me?” And he invited Philip to get in and sit beside him. Now the passage of the scripture that he was reading was this:
“Like a sheep he was led to the slaughter,
and like a lamb silent before its shearer,
so he does not open his mouth.
In his humiliation justice was denied him.
Who can describe his generation?
For his life is taken away from the earth.”
The eunuch asked Philip, “About whom, may I ask you, does the prophet say this, about himself or about someone else?” Then Philip began to speak, and starting with this scripture, he proclaimed to him the good news about Jesus. As they were going along the road, they came to some water; and the eunuch said, “Look, here is water! What is to prevent me from being baptized?” He commanded the chariot to stop, and both of them, Philip and the eunuch, went down into the water, and Philip baptized him. When they came up out of the water, the Spirit of the Lord snatched Philip away; the eunuch saw him no more, and went on his way rejoicing. But Philip found himself at Azotus, and as he was passing through the region, he proclaimed the good news to all the towns until he came to Caesarea. Acts 8:26–40
Em Português (Versão Almeida Corrigida e Revisada 2009:
E o anjo do Senhor falou a Filipe, dizendo: Levanta-te e vai para a banda do Sul, ao caminho que desce de Jerusalém para Gaza, que está deserto. E levantou-se e foi. E eis que um homem etíope, eunuco, mordomo-mor de Candice, rainha dos etíopes, o qual era superintendente de todos os seus tesouros e tinha ido a Jerusalém para adoração, regressava e, assentado no seu carro, lia o profeta Isaías. E disse o Espírito a Filipe: Chega-te e ajunta-te a esse carro. E, correndo Filipe, ouviu que lia o profeta Isaías e disse: Entendes tu o que lês? E ele disse: Como poderei entender, se alguém me não ensinar? E rogou a Filipe que subisse e com ele se assentasse. E o lugar da Escritura que lia era este:
Foi levado como a ovelha para o matadouro;
e, como está mudo o cordeiro diante do que o tosquia,
assim não abriu a sua boca.
Na sua humilhação, foi tirado o seu julgamento;
e quem contará a sua geração?
Porque a sua vida é tirada da terra.
E, respondendo o eunuco a Filipe, disse: Rogo-te, de quem diz isto o profeta? De si mesmo ou de algum outro? Então, Filipe, abrindo a boca e começando nesta Escritura, lhe anunciou a Jesus. E, indo eles caminhando, chegaram ao pé de alguma água, e disse o eunuco: Eis aqui água; que impede que eu seja batizado? E mandou parar o carro, e desceram ambos à água, tanto Filipe como o eunuco, e o batizou. E, quando saíram da água, o Espírito do Senhor arrebatou a Filipe, e não o viu mais o eunuco; e, jubiloso, continuou o seu caminho. E Filipe se achou em Azoto e, indo passando, anunciava o evangelho em todas as cidades, até que chegou a Cesareia. Atos 8:26–40


Uma vez que o texto foi lido em voz alta, começamos a facilitar o estudo bíblico usando a estratégia pedagógica dos 4 Cs restantes do ECB. Essas estratégias não foram empregadas de forma formal, mas influenciaram a maneira como procedemos.
Contexto
Uma maneira útil de estabelecer os contextos dos participantes é pedir-lhes que identifiquem os temas da narrativa. Suas respostas revelam mais sobre seus próprios contextos do que eles mesmos imaginam. Quando pedimos aos participantes que identificassem os principais temas da narrativa, nós os dividimos em grupos, alguns de acordo com o local onde os participantes estavam sentados e outros de acordo com as preferências linguísticas (uma consideração prática para economizar tempo na tradução). Outros participantes se comunicaram em seus próprios idiomas, e
tivemos dispositivos de tradução à disposição com tradutores se comunicando para que todos entendessem o que os participantes estavam dizendo.
Como facilitadores, caminhamos entre os participantes quando eles se dividiram em grupos menores de discussão de temas-chave; depois de alguns minutos de discussão, pedimos a um membro dos vários grupos que comunicasse os temas-chave e os pontos de discussão de seus grupos para o público maior. As discussões foram envolventes e interativas, com muitos participantes tão ansiosos e interessados em participar que, como facilitadores, tivemos dificuldade em encerrar as discussões. As conversas continuaram nos intervalos e até mesmo nos vários dias da assembleia, com muitos participantes expressando apreço pela forma como esse método permitiu que suas vozes fossem ouvidas.
Depois que os participantes passaram vários minutos discutindo sua percepção dos principais temas do texto, pedimos a alguns deles que compartilhassem os temas discutidos em seus grupos. Esses temas foram capturados literalmente conforme foram articulados na sessão plenária, como segue:[7]
· Comunidade supera barreiras
· Eunuco e identidade de gênero
· Sem nome
· Educação teológica
· Relações que se desenvolvem
· Capacitação
· Restauração
· Agência (ao pedir o batismo)
· Missão inclusiva que não deixa ninguém para trás
· Espírito Santo
· Graça
· Alegria
· Satisfação
· Libertação
· Ação
· Fé
· Piedade
· Obediência
· Alegria de aprender
· Transformação
· Rainha Candice (ignorada, embora seja uma líder)
· Filipe ouviu, aceitou e agiu de acordo com o chamado
· O eunuco reagiu
· Extensão da missão de Deus para a África
· Interação entre gerações (Filipe — Jovem, Eunuco)
· Distinções de classe
· A salvação não é inclusiva
· Atitude de eunuco — embora de alto nível, humilde, aberto a aprender
· Coragem para Philip
· O evangelho cresce
· Escritura importante para LGBTQI+
· Reconhecimento do relacionamento com a África
· Quem está representado?
· Quais corpos são importantes?
· Quão inclusivo foi esse texto?
· Armação da sexualidade
· O batismo como um rito para pertencer à igreja
Esse exercício alcançou exatamente o que pretendíamos. Ele abordou as diversas questões que as comunidades de fé enfrentam em contextos globais. Em muitos contextos de fé, essa história é frequentemente reduzida à espiritualidade individual, lidando com questões de piedade pessoal e fé, ou aspectos doutrinários, como o batismo, ou até mesmo o alcance missiológico, como a expansão do evangelho. No entanto, os temas que emergiram da pré-assembleia foram além da fé, da doutrina e da missão e trataram também de questões de identidade, gênero, inclusão, agência e política do corpo — assuntos muitas vezes deixados de fora de sermões dominicais bem-comportados e educados usando recursos que aparecem nos nossos lecionários. O enfrentamento desses temas pelos próprios participantes nos levou estrategicamente ao terceiro C: criticidade.
Criticidade
Nas narrativas bíblicas, o que encontramos não são apenas relatos históricos (contestados) do passado, mas um convite para refletir sobre o presente à luz do passado. É exatamente isso que o exercício de identificação temática ajudou a incentivar. E, no entanto, entender parte da história em seu próprio contexto também é útil, para que possamos pensar nas histórias bíblicas não apenas como janelas para outro mundo, onde podemos espiar a vida (imaginada ou não) daqueles que nos precederam, mas também como um espelho[8] ou, como Charlene van der Walt e Hanzline Davids colocam isso de forma mais apropriada, como “uma superfície reflexiva”.[9] Pensar na Bíblia como uma superfície reflexiva dinâmica é permitir que as vozes bíblicas antigas se tornem parceiras de diálogo das comunidades contemporâneas. Sem dar uma longa palestra sobre os antecedentes históricos e sociológicos antigos usando métodos histórico-críticos, usamos os estímulos e as reflexões dos participantes para ilustrar e expor algumas das principais idiossincrasias contextuais sócio-históricas e culturais que emergem do texto.
Dessa forma, não sobrepusemos nossa compreensão acadêmica do mundo antigo aos participantes. Em vez disso, fomos guiados pela compreensão que eles tinham do texto e, quando necessário, e estimulados por suas reflexões, fomos ao lado deles e complementamos sua compreensão do texto com as especificidades históricas socioculturais relevantes do Mediterrâneo antigo que iluminaram ainda mais nossas conversas. Isso é o que significa ler criticamente na comunidade e no contexto. Isso leva aos dois últimos Cs do ECB: conscientização e mudança.
Conscientização
A conscientização das comunidades de fé sobre as injustiças acontece na parte do estudo bíblico em que os participantes são solicitados a refletir sobre seus contextos à luz do texto. Nessa parte do estudo bíblico, pedimos aos participantes que refletissem sobre o seguinte desafio: “Se o batismo inclui a inclusão plena, o que impede as pessoas de se incluírem plenamente em suas próprias comunidades de fé?”
Assim como na pergunta sobre identificação temática, pedimos que eles refletissem sobre essa questão em pequenos grupos. Estas foram algumas das respostas obtidas no feedback:
- gênero, idade, raça, orientação sexual, deficiência, viuvez, infertilidade, origem social (segregação com base na religião), desejo de ajudar os forasteiros (mas apenas fora, não nos espaços que reivindicamos)
- Por que precisamos ser incluídos? Quem nos inclui? As mulheres são afetadas pela inclusão (ordenação de mulheres), diferenças culturais, batismo de crianças
- Medo das culturas ao nosso redor, não entender a Bíblia, ter uma mente fechada, diferentes teologias de batismo
- Certas práticas culturais excluem/prejudicam o batismo
- Status, medo de vigilância, medo de compromisso, medo de estigma da religião (vista como de classe baixa), incompreensão do batismo
- Práticas culturais que influenciam a teologia, como o direito ao batismo afeta os relacionamentos, o batismo é importante em contextos marginalizados, o que dá à pessoa o direito à família
- Localizações geográficas, exclusão do sul global — Sentimento de exclusão, classismo social, as chamadas igrejas “históricas” versus igrejas menos históricas que são excluídas nessa estrutura ecumênica
- Rigidez — pensar que nossos sistemas têm a mesma autoridade que as escrituras, profissionalização da fé cristã sobre quem tem autoridade
- A tradição exclui — não apenas as pessoas, mas também as práticas, no contexto da contrarreforma
- Não é honesto em relação a medos, falta de espaços seguros
- Igrejas que relacionam a identidade com identidade nacional (ou étnica)
- Desafiando [o que constitui] a santidade?
- Falta de liberdade religiosa, leitura seletiva dos textos bíblicos que excluem as mulheres
- Condições físicas — enxergar, andar: não podem ter o mesmo acesso que as pessoas fisicamente capazes, diferença geográfica entre o norte e o sul, jogos de poder para proibir a unidade, falar da graça de Deus como algo excludente, fornecer acesso à educação teológica
- Estamos perguntando a outras religiões se elas querem ser incluídas no amor de Cristo?
· Em um ambiente multirreligioso — Medo de perseguição, vergonha da pobreza, pessoas sendo excluídas Saúde mental
Havia muitas questões a serem abordadas na extensa e rica lista fornecida pelos participantes. Obviamente, não poderíamos fazer justiça a todos eles. À luz da proeminência do movimento global Black Lives Matter durante a pandemia da COVID-19, inevitavelmente nos concentramos na questão da raça em sua interseção com gênero, sexualidade e classe.
A questão da raça aparece de várias formas no texto que podem não ser a forma como a raça e a negritude aparecem nos tempos atuais. O que ficou mais evidente em nossas reflexões compartilhadas foi o fato de que o eunuco etíope tem poder econômico — ele é ministro das finanças de um reino poderoso. O que veio à tona foi que, em muitas de nossas conversas em círculos ecumênicos, a resposta ao racismo costuma vir de um lugar de caridade e desenvolvimento, e não de justiça. Como resultado, as pessoas de cor tendem a ser retratadas como estando à margem ou como pobres e, portanto, a resposta é de caridade — o chamado para estarmos atentos aos “menores de nós”.
Os participantes apontaram, com base em suas próprias experiências de vida, que essa lente da caridade obscurece a verdadeira razão sistêmica pela qual as pessoas estão à margem — que é a injustiça racial, a colonização, a queerfobia, o apartheid, as estruturas de castas e assim por diante. Foi claro que o desafio era falar de forma concreta e não abstrata sobre opressões raciais e outras. Um ponto recorrente foi o fato de que nomear as estruturas de opressão é um trabalho importante.
Isso exigiu uma discussão sobre corpos reais em vez de apenas corpos de conhecimento.[10]10 O texto aponta para questões importantes a esse respeito. Que corpos importam? — que é uma questão de identidade. Como os corpos são importantes? — que é uma questão de interseccionalidade. Como os corpos são retratados? — que é uma questão de política de representação. Embora as interpretações tradicionais tendam a ignorar o corpo real do eunuco e a se concentrar em seu corpo espiritual (sua salvação), centralizamos seu corpo em nossas reflexões em três aspectos principais, relacionados à pergunta do próprio eunuco sobre o que o impede de ser batizado:
· Corpo e gênero. Na antiga sociedade mediterrânea, o eunuco era “não-homem”[11] por ser um homem castrado. Por isso, ele teria sido relegado aos pátios externos do templo em Jerusalém para adorar.
· Corpo e orientação sexual. A orientação sexual do eunuco não está clara no texto, mas sabemos que certamente qualquer orientação do mesmo sexo o impediria de ser totalmente incluído.
· Corpo e raça. O eunuco era claramente um homem negro africano do que hoje é o Sudão. Como os corpos negros são limitados à inclusão total?
Perguntamos aos participantes: E se a pergunta feita pelo eunuco etíope sem nome fosse uma declaração retórica em vez de uma pergunta? E se déssemos ao eunuco algum poder de ação? Afinal de contas, as pessoas marginalizadas não precisam que sua marginalização lhes seja explicada. Elas a vivem diariamente. E assim, oferecemos aos participantes outra opção de interpretação. Conhecendo plenamente todas as muitas coisas que o excluiriam do batismo, o eunuco, em vez disso, dá a Filipe uma oportunidade de conversão.
1. O eunuco ordena que a carruagem seja parada.
2. O eunuco identifica que há água.
3. O eunuco exige sua inclusão total por meio do símbolo do batismo.
Essas três opções pareceram mais aceitáveis para os participantes como uma forma de reinterpretar o texto. Terminamos com essas reflexões no primeiro dia do estudo bíblico com a seguinte pergunta: Como você será um agente para a inclusão total na assembleia? Essa pergunta foi abordada de forma mais completa em nossas reflexões no segundo dia, quando trabalhamos de forma mais intencional com o C final: mudança (change em inglês). As discussões nos pequenos grupos no dia anterior revelaram uma miríade de questões nos contextos locais de fé que levariam semanas para serem analisadas se quiséssemos fazer justiça a cada uma delas. O que era importante (e realista) nesse momento era enfrentá-los e ampliá-los para as discussões que ocorreriam na assembleia principal. Isso foi alcançado nessa parte do estudo bíblico, pois cada um de nós apresentou as reflexões finais sobre sexualidade, raça e religião.
Mudança: Reflexões finais
A história é familiar para muitas de nós — é uma história pós-Páscoa, e os apóstolos estão levando a sério o mandato de espalhar as boas novas. Filipe não é diferente e está ocupado com sua evangelização quando um anjo lhe pede que pare o que está fazendo e vá ao encontro desse eunuco etíope. Ao considerarmos a importância dessa história para o tema principal da assembleia, “O amor de Cristo move o mundo para a reconciliação e a unidade”, pedimos aos participantes que considerassem quem era o personagem do eunuco etíope. Quem era esse homem ambíguo que buscava ser batizado, que buscava ser incluído em uma comunidade de fé por meio do ritual do batismo nas águas? Como já foi dito, três aspectos de sua identidade foram importantes para nossa consideração dessa passagem — primeiro, a identidade sexual e de gênero do eunuco; segundo, sua identidade étnica ou racial; e terceiro, sua identidade religiosa.
Identidade sexual e de gênero
Um eunuco era um homem castrado, ou seja, tinha seus testículos removidos para que pudesse servir à casa real. Por que a realeza precisaria de um homem assim? Eles precisavam ser homens de confiança com as mulheres da realeza (ou seja, que não tivessem relações sexuais com elas, consensuais ou não) para que a linhagem sanguínea do trono e os direitos de herança pudessem ser garantidos. Ao cortar os testículos dos homens, a realeza assegurava que os eunucos seriam incapazes de gerar filhos. Os estudiosos da história nos dizem que, embora possa ter havido casos em que os homens foram forçados, contra sua vontade, a serem castrados e a servirem à casa real, geralmente o candidato mais apropriado para o papel de eunuco seria alguém que não desejasse mulheres. Portanto, os eunucos eram escolhidos entre esses homens. Embora o mundo antigo não trabalhasse com as mesmas categorias de homossexual e heterossexual que trabalhamos hoje, os estudiosos do mundo antigo e até mesmo Jesus em Mateus 19 indicaram que vários tipos de eunucos poderiam ser identificados: o Jesus de Mateus diz o seguinte: “Porque há eunucos que o são desde o nascimento, e há eunucos que foram feitos eunucos por outros, e há eunucos que se fizeram eunucos por causa do reino dos céus. Aceite isso quem puder” (Mateus 19:12).
Essa categoria de eunucos que eram assim desde o nascimento parece se referir a homens que, desde a infância, podem não ter demonstrado interesse por mulheres e podem muito bem ter demonstrado interesse por homens. Esses eram, portanto, os candidatos ideais para servir como eunucos para proteger a linhagem real. Portanto, quando esse eunuco se apresentasse a Filipe, ele saberia imediatamente e exatamente com que tipo de pessoa estava lidando. A pergunta sobre a qual pedimos que os participantes refletissem foi a seguinte: Ao entrarmos na assembleia, quem são as pessoas que estão buscando a inclusão total e quais são suas identidades sexuais e de gênero?
Identidade étnica e racial
Além da identidade de gênero, chamamos novamente a atenção dos participantes para esse eunuco sem nome, também identificado como etíope. O termo “etíope”, assim como o termo “mouro” no mundo antigo, era usado de modo geral para qualquer pessoa de pele mais escura. Mais especificamente neste texto, ele se refere a alguém que veio de uma área que os historiadores observaram que poderia estar próxima do atual norte do Sudão.[12]12 Ao contrário dos retratos coloniais comuns dos etíopes atuais, esse era um reino poderoso e rico e, portanto, o eunuco ocupava uma posição importante como tesoureiro. Poderíamos até chegar ao ponto de nos referirmos a ele como o ministro das finanças do estado que servia a Candice, rainha da Etiópia. “Candice” significa rainha-mãe e não era um nome próprio. Em vez disso, significava a pessoa encarregada da administração do reino, já que, como muitos estudiosos observam, o rei era considerado um deus e, portanto, não podia se envolver em assuntos mundanos, como a administração de um reino. A questão sobre a qual pedimos aos participantes que refletissem aqui foi como as vidas negras são importantes no contexto da assembleia e no contexto ecumênico. Quais são as relações complexas entre economia, raça e religião?
Identidade religiosa
É na questão da religião do etíope que os estudiosos parecem divergir mais. Ele é judeu? Ele é gentio? É um gentio convertido ao judaísmo? Ele segue a religião do deus sol? Só pudemos levantar essas questões e não entrar em detalhes com os participantes, pois esse não era um contexto de sala de aula. O que queríamos dizer é que, embora os detalhes da identidade religiosa do eunuco fossem obscuros, sabemos pelo texto que ele está voltando para casa depois de uma peregrinação a Jerusalém para adorar e que, quando Filipe o encontra, ele está sentado em sua carruagem lendo um dos profetas — ou seja, Isaías. Então, com esse pano de fundo em mente, pedimos que eles voltassem ao texto e à pergunta que o eunuco faz a Filipe, que queríamos centralizar: “Veja, aqui tem água! O que me impede de ser batizado?”
O que de fato?
A tradução da Bíblia que escolhemos usar não fornece nenhuma resposta à pergunta do eunuco. Em vez disso, lemos simplesmente que ele “ordenou que a carruagem parasse, e ambos, Filipe e o eunuco, desceram à água, e Filipe o batizou”. Incentivamos os participantes, ao entrarem nos procedimentos da assembleia, a permanecerem com a pergunta, pois não se tratava apenas de uma pergunta retórica. Dada a origem racial, de gênero e religiosa do eunuco, se ele pensasse bem, poderia ter encontrado muitas razões que o impediram de ser batizado. Se entendemos que o batismo é a chave para a liberdade de viver, amar e adorar em uma comunidade, e sabemos o que sabemos sobre o eunuco, então a pergunta sobre o que o teria impedido de ser batizado se torna mais real.
Conclusão
O que de fato impediu o eunuco de ser batizado — de ser livremente recebido na comunidade da fé? No final, não foi nada — nem as leis religiosas, nem seus próprios medos. Embora o texto nos diga que, após o batismo, ele vai embora regozijando-se, também sabemos que essa ideia de liberdade pode ser um pouco idealista. Isso porque, mesmo quando somos recebidos em nossas comunidades de fé, nossas experiências vividas às vezes se baseiam em falsas ideias de inclusão: “Nós lhe demos um espaço, agora você deve obedecer às nossas regras!” Mas, na verdade, como uma comunidade de fé, talvez precisemos reconsiderar o que queremos dizer com conversão à fé — nessa história, é realmente o eunuco que é convertido ou é Filipe?
Jesus nos convida a cortar os ramos que não dão frutos nos evangelhos. Que ramos (metaforicamente falando) Filipe precisou podar para que pudesse ser mais fiel à mensagem libertadora do evangelho? Ele precisou abrir mão de seu próprio poder, privilégio e posição para entender esse cristão negro africano queer? Que privilégio o eunuco precisou podar para entender esse novo movimento religioso que se alinhava aos valores socialistas? Como ele, como ministro da Fazenda de uma nação tão poderosa, precisaria ser convertido?
E quando o negro cristão queer (embora rico, e vemos a importância de uma ótica interseccional aqui) é bem-vindo, o que pode impedi-lo de permanecer na chamada casa da liberdade?
Terminamos com uma bênção adaptada de São Francisco:
Que Deus nos abençoe com desconforto em relação a respostas fáceis, meias-verdades e relacionamentos superficiais, para que possamos viver profundamente em nossos corações…
Que Deus nos abençoe com raiva da injustiça, da opressão e da exploração das pessoas, para que possamos trabalhar pela justiça, pela liberdade e pela paz…
Que Deus nos abençoe com lágrimas para derramar por aqueles que sofrem com a dor, a rejeição, a fome e a guerra, para que possamos estender nossas mãos para confortá-los e transformar sua dor em alegria…
E que Deus nos abençoe com tolice suficiente para acreditar que podemos fazer a diferença neste mundo, para que possamos fazer o que os outros dizem que não pode ser feito — trazer justiça e bondade a todos.
[1] Os interesses de pesquisa de Sarojini Nadar são a violência baseada em gênero — física, sexual e epistêmica. Este artigo é baseado em um trabalho em andamento apoiado pela National Research Foundation (NRF) da África do Sul (Grant Number 118854) dentro do tema de pesquisa de Gênero e Religião. Esta autora reconhece que as opiniões, descobertas e conclusões expressas são de sua exclusiva responsabilidade, e a NRF não assume nenhuma responsabilidade nesse sentido. Paulo Ueti é teólogo e membro do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos no Brasil e Assessor Teológico da Anglican Alliance and United Society Partners in the Gospel, ambas organizações baseadas no Reino Unido. Seus interesses de pesquisa são gênero, violência, diversidade, justiça ambiental, eclesiologia e teologias emergentes. Os interesses de pesquisa de Johnathan Jodamus são os estudos culturais e de gênero, bem como a teologia negra. Este artigo é baseado em um trabalho em andamento apoiado pela NRF da África do Sul (Número de Subsídio 138251). Este autor reconhece que as opiniões, constatações e conclusões expressas são de sua exclusiva responsabilidade, e a NRF não assume nenhuma responsabilidade nesse sentido.
[2] Sarojini Nadar, “Beyond the ‘Ordinary Reader’ and the ‘Invisible Intellectual’: Shifting Contextual Bible Study from Liberation Discourse to Liberation Pedagogy,” Old Testament Essays 22:2 (2009), 390.
[3] Gerald West, Contextual Bible Study (Pietermaritzburg: Cluster Publications, 1993); Doing Contextual Bible Study: A Resource Manual, Ujamaa Centre for Community Development and Research, rev. version, 2015.
[4] Sarojini Nadar, “Hermeneutics of transformation? A Critical Exploration of the Model of Social Engagement between Biblical Scholars and Faith Communities”, Scriptura 93 (2006), 339–51.
[5] Nadar, “Beyond the ‘Ordinary Reader”, 384– 403
[6] Gerald West, “Reading the Bible with the Marginalized: The Value/s of Contextual Bible Reading,” Stellenbosch Theological Journal 1:2 (2015), 237– 42
[7] Agradecemos a Emma Rahman por sua meticulosidade em capturar as várias respostas dos participantes.
[8] Ver Johnathan Jodamus, “Why (Do) We Still Need Black Theology? A Pedagogical Case For Intersecting Black Theology and Biblical Hermeneutics”, em Liberating Black Theology: Emerging South African Voices, ed. Demaine Solomons Demaine Solomons e Eugene Baron (Cidade do Cabo: Sun Media Press, a ser lançado).
[9] Ver Charlene Van Der Walt e Hanzline Davids, “Heteropatriarchy’s Blame Game: Reading Genesis 37 with Izitabane during Covid 1t”, Old Testament Essays 35:1 (2022), pp. 40–42
[10] Consulte Obioma Nnaemeka, “Nego-Feminism: Theorizing, Practicing and Pruning AFrica’s Way”, Journal of Women in Culture and Society 2t:2 (2004), 3G3
[11] Veja Brittany E. Wilson, Unmanly Men: Refigurations of Masculinity in Luke-Acts [Refigurações da masculinidade em Lucas-Atos] (Nova York: OxFord University Press, 2015).
[12] Ver Halvor Maoxnes e Marianne B. Kartzow, “Complex Identities: Ethnicity, Gender and Religion in the Story of the Ethiopian Eunuch (Acts 8: 2G-40)”, Religion and Theology 17:3–4 (2010), 184–204