No esvaziamento de Deus, a glória da Vida

Paulo Ueti
34 min readDec 9, 2020

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Uma leitura de Fl 2:5–11

Paulo Ueti[i]

Jesus de Nazaré é o desejo de Deus,

Seu maior sonho transformado em corpo,

Sua confissão de amor entre nós, como irmão.

Rubem Alves

1. Introdução

Creio na ressurreição do corpo[ii]. Essa é uma frase amplamente repetida nas igrejas cristãs. Nascida já em contextos conflitivos e de controvérsias sobre o corpo e a natureza do Cristo, essa afirmação de fé ainda hoje em dia é pouco compreendida e, certamente, abusada durante pregações e estudos bíblicos ou catequéticos. Acrescente-se a esse abuso uma antropologia baseada ainda na dicotomia platônica entre corpo e espírito, onde as duas realidades seguem em disputa entre si.

Para muitos/as o corpo ainda é algo que deva ser interditado, ele não pode dizer o que passa, não pode expressar-se livremente. Precisa ser contido e controlado, especialmente o corpo das mulheres, as nominadas como “degredadas filhas de Eva”. Ele provoca a ira dos “guardiões da moral e dos bons costumes”, é alvo da violência que maltrata especialmente mulheres, idosos/as e crianças.

Nossa sociedade, em determinado momento, se viu dragada no debate sobre Geisy Arruda, uma mulher jovem, estudante de Turismo numa universidade de São Bernardo do Campo/SP e sua “pouca roupa” ou o seu “atentado contra a moralidade”. Foi chamada de “puta da faculdade”, teve que ter suas “vergonhas” cobertas por um jaleco (branco, é claro) e foi confinada numa sala em nome da proteção (tecnicamente chama-se “cárcere privado”).

Colegas de faculdade, professores e policiais foram ouvidos sobre o caso. O fascínio compartilhado era o vestido rosa. Curto, insinuante, transparente foram alguns dos adjetivos utilizados pelos mais novos censores do vestuário da sociedade brasileira. “A roupa não era adequada para um ambiente escolar”, foi a principal expressão da indignação moral causada pelo vestido rosa. Rapidamente um código de etiqueta sobre roupas e relações sociais dominou a análise sociológica sobre o incidente. Não se descreveu a histeria como um ato de violência, mas como uma reação causada pela surpresa do vestido naquele ambiente.

O que torna a história única é o absurdo dos fatos. Um vestido rosa curto desencadeia o delírio coletivo. E o delírio ocorreu nada menos do que em uma faculdade, o templo da razão e da sabedoria. Os delirantes não eram loucos internados em um manicômio à espera da medicação ou marujos recém-atracados em um cais após meses em alto-mar. Eram colegas de faculdade inconformados com um corpo insinuante coberto por um vestido rosa. Mas chamá-los de delirantes é encobrir a verdade. Não há loucura nesse caso, mas práticas violentas e intencionais. Esses jovens homens e mulheres são agressores. Eles não agrediram o vestido rosa, mas a mulher que o usava para ir à faculdade. (O Estado de São Paulo, 1/11/2009 — Débora Diniz)

O corpo, eterno lugar de controvérsias, de ódios e prazeres, de descidas aos infernus e de caminhadas pelas nuvens, foi o jeito e também o lugar escolhido pelo desejo incontrolável de Deus para fazer nele sua morada. Uma linguagem compreensível para a humanidade (ou nem tanto) para manifestar a sacralidade deste, o corpo e d’Ele, Deus. O corpo torna-se verdadeiramente o lugar privilegiado para o encontro e conhecimento de Deus. “Aprendei a fazer o bem! Buscai o direito, corrigi o opressor! Fazei justiça ao órfão, defendei a causa da viúva!” (Is 1:17). O corpo é o templo do Espírito Santo (1Cor 6:19). O corpo necessitado e vulnerável é o destino das ações de Jesus e, portanto, deveria ser o dos/as seus seguidores/as (Lc 10:25–37; Jo 8:1–11). O corpo geme, junto com a natureza toda, pela redenção (Rm 8:18–27).

Por isso torna-se imprescindível proclamar a viva voz que eu “creio na ressurreição do corpo/carne”. “O conhecimento de Deus não surge do nada, não é nenhuma revelação do além, mas está intimamente relacionado à necessidade do corpo humano de se expressar, de viver, de existir, de transformar a realidade que o cerca num universo de sentido, ou, nas palavras de Rubem Alves, numa “extensão do corpo”. (REBLIN, 2009, p. 97).

E o mais excêntrico e místico de tudo isso é que Deus escolhe essa maneira, baseada no limite e na fraqueza, no efêmero e no volúvel, que é o corpo humano para, mais uma vez e “de uma vez por todas” (Hb 7:27) solidarizar-se, comunicar-se (fazer comunhão) e comunicar ao mundo seu projeto e seu desejo, seu compromisso com as pessoas e a natureza em situação de vulnerabilidade.

você tem sede de quê?

você tem fome de quê?

a gente não quer só comida,

a gente quer comida, diversão e arte.

a gente não quer só comida,

a gente quer saída para qualquer parte

a gente não quer só comida,

a gente quer bebida, diversão, balé.

a gente não quer só comida,

a gente quer a vida como a vida quer.

(Arnaldo Antunes)

2. (Convers)ações excêntricas — para além do corpo, mas somente através dele

A perícope em questão, sobre o chamado “hino Cristológico” da Carta de Paulo aos Filipenses, encontra-se num contexto de conflitos e é destinado a uma comunidade muito querida para Paulo. Ele escreve a carta provavelmente enquanto estava preso em algum lugar por perto, não se sabe bem onde ainda. A possibilidade de ser enviado para a morte parecia algo palpável, mas nem por isso Paulo deixou-se abater. Ao contrário, quando lemos a carta dirigida à comunidade de Filipos, diferente da Carta aos Coríntios, Paulo parece alguém pleno e de contagiante alegria e esperança. É marcante que no inicio da Carta ele peça que o “amor cresça cada vez mais, em conhecimento e discernimento/percepção” (Fl 1:9).

Paulo pede que as pessoas daquela comunidade se alegrem com ele (Fl 1:4,18; 2:2,17s,28; 3:1; 4:1,4,10), ele deseja compartilhar com a comunidade aquilo que recebeu dela. Pode ser que a comunidade tenha se iniciado a partir do batismo de Lídia, relatado no livro dos Atos dos Apóstolos 16:11–40, e que esse fato tenha deixado em Paulo um carinho especial pelo grupo. Também foi um lugar, como outros na verdade, difícil na convivência. Contam os Atos dos Apóstolos também que, depois que Paulo saiu em defesa de uma jovem escrava, libertando-a de um “espírito adivinhador” (provavelmente libertando-a de outras situações também) foi hostilizado, juntamente com seu companheiro Silas, pelo proprietário da jovem. Foram acusados de “perturbar a cidade e de propagar costumes e práticas que não podiam ser aceitos”.

Parece que a comunidade cristã já nasce com os “saberes (conhecimento) e sabores (discernimento)” da cruz de Cristo e se dá conta, no corpo açoitado e/ou escravizado, hostilizado, violentado pelos seus pares, de que certas “práticas” e linguagens dos corpos podem perturbar a ordem estabelecida em favor dos proprietários. É interessante notar que a hostilidade a Paulo e Silas foi por causa das “práticas e costumes” que não deveriam ser “aceitos” naquele ambiente tão confortável de sempre como era o império romano e suas ramificações locais. Não foram as pregações ou o discurso intelectual (hoje falaríamos de “verborragia acadêmico/pastoral”) que provocaram a ira daqueles que se tornaram seus adversários e adversárias, mas a linguagem dos corpos dos “servidores/as de Deus”, o lugar em que eles ocupavam naquele momento em defesa da jovem em necessidade.

Essa realidade de proximidade, e para além das “normas estabelecidas”, formata as relações de Paulo com essa comunidade e ambos puderam ajudar-se mutuamente na reflexão e no sustento da fé. Paulo escreveu vários bilhetes para esse grupo, que depois se transformaram na “Carta de Paulo aos Filipenses”, e a comunidade de Filipos pôde ser um “porto seguro, um lugar para voltar” para Paulo durante seu tempo de prisão e de sofrimentos. A herança de Jesus estava muito presente nessas relações. A comunidade e Paulo puderam testemunhar e puderem propagar isso para muitas igrejas.

Naquele episódio que marcou um conflito estruturante da formatação da comunidade de Filipos, o corpo oprimido, dominado, adonado por um senhor (kyrios, lord, senhor, amo, seja lá que nome que tenha), coisificado por uma determinada escola filosófica ou por uma determinada dogmática apelidada de teologia (quase usurpação semântica!), “deixa de ser o lugar de negação e de sofrimento e se afirma como lugar de criação e de prazer que era impossível não aprender a dizê-lo de outra maneira também em nossas orações. Foi e tem sido um aprendizado difícil e desafiador.” (CARDOSO, 2001, 6)

Paulo então, no texto em estudo, inicia compelindo a comunidade (e seus leitores/as de hoje) a configurarem sua vida “no mesmo sentimento (a ter a mesma atitude), no mesmo amor, numa só alma, num só pensamento, nada fazendo por competição ou vanglória, mas com humildade, julgando cada um os outros superiores a si mesmo, nem cuidando cada um só do que é seu, mas também do que é dos outros” (Fl 2:2–4).

Ora, se Paulo inicia sua exortação sobre “como viver em comunidade” e sobre “quais devem ser as bases teológicas, físicas, associativas, psicológicas e espirituais” significa que há problemas e contradições, obviamente como há em qualquer aglomeração humana que resolve se juntar por algo em comum. Diferenças de tradição, de sexo, de origem social, de orientação sexual, de interpretação da vida e das escrituras, bem como diferenças de desejos, de prospectivas, de visões de comunidade e basicamente diferença do que significava a compreensão da “herança de Jesus”, interpretada por Paulo desde que este entrou para o grupo dos cristãos/ãs.

Aponto para a obviedade das diferenças porque elas são fundamentais e estruturantes de qualquer organização comunitária. Diferença nem sempre é sinônimo de contrário. A questão para Paulo não está voltada para uma homogeneização da comunidade. Mas para alertar a comunidade de que a con/figuração da vida de cada um e da igreja deve pautar-se na vida de Jesus e de seu grupo. Aqui não falo dos Doze, os quais aliás não se devem ser levados muito em conta como modelo de seguimento.

Para Paulo, parece que está bem posto que o Evangelho de Jesus, o Cristo, tem significado e influências políticas, culturais e teológicas sérias e que não será fácil segui-lo (Cristo/Evangelho). A Cruz será a companheira fidedigna e o conflito o tempero cotidiano de todas as refeições, inclusive da “Ceia do Senhor”. Viver o evangelho é “literalmente” viver, não pregar ou ensinar, como muitos/as gregos/as e judeus estavam acostumados. O encontro com o evangelho será necessariamente uma “trombada” com as convicções da vida, com o império, com a religião e com as próprias convicções. É o enfrentamento de si mesmo. E isso só será possível “pela consolação que há no Amor, pela comunhão no Espírito, por toda ternura e compaixão” (2:1). Amor, comunhão, Espírito, ternura e compaixão são aspectos transgressores de nossa vida “normal e normatizada”. Pautar-se por esses aspectos certamente causará muitos conflitos, para os quais devemos em comunidade enfrentar e por-nos “em marcha”!

3. A teia na qual podemos nos apoiar e a qual devemos suportar

O texto aqui em questão já foi muito estudado anteriormente. É um hino, tema desta revista. É considerado de extrema importância na teologia de Paulo, bem como para o conjunto do Novo Testamento. Considerando que seja um hino, muitos/as acreditam que seja de um período pré-paulino, alguns acham inclusive que é um hino pré-cristão, posteriormente adaptado, acrescentando-se as ultimas estrofes para “cristologizar” o mesmo. Há um consenso em acreditar que, de qualquer maneira, é uma das peças literárias de uso litúrgico mais antigas do ambiente cristão.

Podemos destacar vários temas que emergem a partir do hino: criação, revelação de Deus em Jesus, corporeidade, diaconia, conflitos, cruz, obediência, humildade (um certo cuidado com o universo semântico no qual essa palavra se encontra), glória de Deus, martírio, entre outros. Foi uma excelente fonte para o Credo, que será definido posteriormente na tradição.

Ele pode ser dividido de diferentes maneiras. Eu adoto a seguinte divisão (COMBLIN, 1992, p.40):

Estrofe I

6 Ele tinha condição divina

Mas não aproveitou a sua igualdade com Deus

7 Esvaziou-se a si mesmo

E assumiu a condição de escravo

Estrofe II

Tomou a semelhança humana

E foi tratado como um ser humano

8 Humilhou-se

E foi obediente até à morte, e morte de cruz

9 E por isso Deus o exaltou acima de tudo.

Estrofe III

Outorgou-lhe o nome

Que está sobre todo nome

10 De modo que, ao nome de Jesus,

Se dobre todo joelho no céu, na terra e no inferno

11 E, para a glória de Deus Pai, toda língua confesse:

Jesus é o Senhor.

Quando leio este hino, fico imaginando como seria sua partitura. Poderia ser uma melodia que decresce, que começa com notas altas e vai baixando até um Si. O mesmo movimento da letra do hino. De cima para baixo, propositalmente. Só depois, de baixo para cima, num crescente. E a subida é conseqüência do primeiro movimento de abaixamento ou rebaixamento.

“O caminho consta de dois movimentos, um movimento de baixar e outro de subir. Primeiro, Cristo rebaixa-se. Depois, quando Jesus alcança o ponto mais baixo da descida, o Pai o exalta e o faz subir ao ponto mais alto. A descida começa desde o nível mais alto: Cristo estava ao nível de Deus. No fim volta a esse nível de Deus. Mas para voltar ao seu nível, ele teve que descer ao nível mais baixo possível nesta terra.

No movimento de baixar há quatro degraus: homem, escravo, morto, crucificado. Cristo desceu os quatro degraus. Chegado ao fundo, ele ficou realmente vazio. Fixado na cruz, maldito aos olhos dos homens e aparentemente de Deus, Cristo estava realmente vazio de qualquer dignidade. Estava vazio de tudo o que tinha, vazio de todo valor e toda substância, reduzido a nada. Mas uma vez que ficou reduzido a nada, à nulidade total de poder, o Pai levantou-o e levou-o ao nível mais alto.” (COMBLIN, 1992, p. 40)

Já conhecemos esse movimento na espiritualidade cristã. É estruturante do nosso encontro/diálogo com a divindade e conosco mesmos/as. É o jeito/caminho/método para ler a vida e compreender seus significados. Compreendendo os seus significados podemos reinterpretar essa mesma vida na teia complexa das sociedades em que vivemos e das relações nas quais estamos conectados/as. Essa Leitura Popular da Vida nos indica o caminho para a Leitura Popular da Bíblia.

Esse método nos provoca, consequentemente, a transformações, enfrentamentos, ressignificações, desapegos e “esvaziamentos”. Só assim poderemos “ser exaltados/as”, encontrar e exercitar poder no “nome de Jesus”. Nome esse que devolve a memória revolucionária e desconfortável de uma divindade que tomou partido, que escolheu a fraqueza, o limite e a morte como “meio de comunicação de massa” para apresentar-se e “fazer moda”, fazer escola e mudar hábitos, costumes e mentes. Escolheu “epistemologizar” e desenvolver sua prática a partir de um lugar “normal e normativamente” desautorizado. Escolheu o mundo da vulnerabilidade, das pessoas e da natureza que precisa e que deseja. “Eu te louvo ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste essas coisas aos sábios e doutores e as revelaste aos pequeninos/infantes” (Mt 11:25). “Pois a criação em expectativa anseia/deseja pela revelação dos filhos de Deus… pois sabemos que a criação inteira geme e sofre as dores de parto até o presente. E não somente ela. Mas também nós, que temos as primícias do Espírito, gememos interiormente, suspirando pela redenção do nosso CORPO” (Rm 8:19,22–23).

4. Baixar para encontrar-se e encontrar a divindade habitante em nós

O hino é bem apropriado para uma liturgia. Traduz um método, um caminho e um rito. Entendo o rito como algo que ajuda a determinar caminhos, a ensinar procedimentos e colocar as lentes certas para ver o mundo e expressar-se para o mundo. O rito é educativo, ensina a agir e a (re)pensar.

Este caminho ritualizado feito pela divindade foi por escolha, não foi por acaso nem por “necessidade”, foi por desejo erótico de unir-se a sua criação de maneira plena. Sabemos pela tradição bíblica que essa escolha foi por um apaixonamento lancinante, que não pôde ser contido. Deus deseja e seduz, toma iniciativas e é cuidadoso/zeloso (Jr 20:7; Os 1–3; Ex 34:14).

A ceia do Senhor é fruto desse desejo ardente: “eu desejei ardentemente comer essa Páscoa com vocês” (Lc 22:15). Sua criação “gemia e sofria” batizada (mergulhada) em águas que provocavam morte, opressão, dominação e sofrimento. Por isso ele “desceu”, para realizar um outro batismo, não como mero espectador, mas tomou partido e juntou-se àquelas que ousavam desobedecer a “ordem e o progresso”. Tornou-se água da vida (Jo 4:10–15). Juntou-se a elas e juntou-se à luta delas pela libertação. Era a sua libertação também, pois acabou aprisionado nos templos, sacerdócios privados e teologias de dominação. Envolveu-se como os/as apaixonados/as fazem, com energia, com autoridade, com compartilhamento, com solidariedade, com alteridade, com transgressão e com ressignificações. Esta experiência deve ter ajudado a todos/as os/as outros/as que vieram depois, e tomaram contato com essa memória extraordinária e excêntrica do Êxodo, a continuar litúrgica e ritualmente cantando e praticando que “outros mundos não são somente possíveis, mas estão acontecendo”.

O hino começa com uma premissa fundamental. São as lentes que devemos usar para ler todo o texto, cantar na liturgia e ritualizar na vida: devemos ter os mesmos “sentimentos/atitudes” de Cristo Jesus. Em algumas versões em língua moderna a palavra grega phroneite foi traduzida por “ter a mesma atitude”, ou seja, configurar (tomar como exemplo e fazer você a mesma performance) a vida de acordo com a vida de Jesus. Fazer o que ele fez significa obedecer, pensar como. Eu, particularmente, prefiro essa tradução, que encontramos por exemplo na New American Standard, de “ter a mesma atitude”.

Como sempre esse caminho escolhido por Deus assusta nossas mentes acostumadas a um tipo de imagem de um Deus onipotente e todo poderoso. Na tradução da LXX ele virou “pantocrator” e no Greek New Testament ele tornar-se “kyrios”. Coincidentemente os dois termos são os mesmos usados para designar o imperador. Na Igreja Católica Romana inclusive há uma festa para o “pantocrator”, o Cristo Rei, celebrada no último domingo de novembro, onde Jesus é apresentado travestido de “rei/imperador”.

Voltando ao hino. Parece que o que cantamos não combina com a imagem que foi desenvolvida e inscrita no “normal” da nossa teologia cotidiana ou na espiritualidade das comunidades. Experiências como fraqueza, limite, morte e finitude não combinam com o Deus/Cristo Rei que foi sendo pintado e catequizado durante mais de um milênio. Foi problema para os apóstolos de Jesus (os homens) que não puderam nunca compreender o significado do seu ministério (Jo 12:1–8; Mt 26:6–13; Mc 14:3–9). Foi problema para as igrejas depois da década de 70 E.C. Como “adorar” e/ou ter como “fundante” um Deus que se “encarnou” — assumiu a forma humana na totalidade do limite e da finitude? Alguém que morreu crucificado? Alguém que, aparentemente, foi vencido?

“Tu és o único forasteiro em Jerusalém que ignora os fatos que nela aconteceram nestes dias? … O que aconteceu com Jesus, o Nazareno, que foi um profeta poderoso em obra e em palavra, diante de Deus e diante de todo o povo: nossos chefes dos sacerdotes e nossos chefes o entregaram para ser condenado à morte e o crucificaram. Nós esperávamos que fosse ele quem iria redimir Israel…” (Lc 24:18b-21a).

Essa pergunta, crucial para a fé e para a organização das igrejas, nos acompanha até hoje.

A primeira estrofe, portanto, ainda é um certo “nó na garganta” e na “mente” de muitos/as cristãos/ãs. O hino afirma que Jesus, o Cristo, tinha “condição divina e não se apegou a isso”. Ou seja, não utilizou dessa “prerrogativa da sua natureza” (segundo o hino) como “privilégio”, mas como responsabilidade e conseqüência do seu desejo de amar o mundo. Jesus é, para os/as cristãos/ãs, a plena revelação de Deus. Mas é importante lembrar que Jesus não é Jesus sozinho. A economia que envolve a pessoa, a prática e o discurso de Jesus se faz na comunidade, no mundo das relações e das transgressões em defesa da vida como expressão do amor.

Deus nos fez corpos. Deus fez-se corpo. Encarnou-se.

Corpo: imagem de Deus.

Corpo: nosso destino, destino de Deus.

Isso é bom.

Eterna divina solidariedade com a carne humana.

Nada mais digno.

O corpo não está destinado a elevar-se a espírito.

É o Espírito que escolhe fazer-se visível, no corpo.

E o corpo de Deus, Jesus Cristo, se expande, incha, tomando o universo inteiro: “presente em todos os lugares, mesmo dentro da folha mais diminuta, em cada uma das coisas criadas, dentro e fora, à sua volta e no interior de suas nervuras, por baixo e por cima, atrás e à frente…” (Lutero).

É bem aí, no corpo, que Deus e o homem se encontram” (ALVES, 2006, p.51–52)

Somos ensinados, pelo rito e pela partitura dessa música/hino, que ser gente é algo divino. Nossa finitude, limite, pecado não são impedimentos para a graça de Deus e para a salvação por causa da fé de Jesus (Rm 6–8; Ef 2:1–22). Faz parte da divindade em nós acolher nossas luzes e nossas sombras integralmente. O corpo humano não é somente a expressão do limite, da casca/forma, o lugar do pecado, como por tantos séculos fomos ensinados/as. O corpo humano é também o lugar de Deus, da divindade que escolhe esse método e esse lugar para dizer-se e para ser “dito”. Contra todos os interditos ao redor dos corpos, das sexualidades, dos desejos, dos limites, das doenças proibidas de serem sequer pronunciadas, Jesus se diz e faz dizerem dele palavras que desconcertam, que geram incompreensões.

Sua vida, práxis de libertação e de transgressões, guardada na memória das igrejas e transmitida pelo cânon, é o apontamento sobre onde e como devemos continuar nosso caminho em direção à santidade/perfeição, para que a vida, que é o que importa, cresça e floresça em todos os cantos.

Não existe um “lado” humano e um “lado” divino em Jesus. Cantamos com esse hino essa junção misteriosa, erótica (que dá energia de vida) e desconfortável da humanização da divindade e vice-versa. Privilégios e exercício de dominação não fazem parte da liturgia de Deus em Jesus. Ele não se utilizou do fato de sua “condição divina” para si próprio. Foi exatamente o contrário, foi uma vida doada para que outras vidas aprisionadas pela religião, pela dominação, pela distorção da memória pudessem ser livres novamente, pudessem ser integradas.

É somente a partir “de baixo” que podemos encontrar “as coisas de cima”. Deus encarnou-se em Jesus, desceu para encontrar a humanidade e sua criação. Encontrar Deus, pois, exige de nós descer também, circular nos “infernus” como já nos ensinava a Igreja Primitiva. Tanto para o tempo de Paulo como de Jesus foi necessário cantar esse hino sempre para ajudar as igrejas, que já estavam em processo de hierarquização, a manter-se fiéis ao desejo e sonho de Deus em Jesus. A memória do Êxodo precisava ser mantida e revisitada para que as comunidades, especialmente as lideranças das comunidades, não corressem o risco de “traição” em nome da “tradição”.

Alguns anos antes Paulo já havia ensinado para a comunidade de Corinto que o corpo é a Igreja de Cristo. Há havia conflitos e disputas de quem era o mais importante ou qual ministério era mais divino do que outro. A Ceia não expressa mais o “sinal dado de graça e por graça” para que a vida permaneça viva, mas tinha se tornado, por causa da não solidariedade, lugar de possível condenação. “Por isso há tantos doentes entre vós”, porque a Ceia não era mais sinal e exigência de solidariedade, mas estava correndo o perigo de tornar-se um rito vazio e externo ou, em palavras modernas, um fetiche.

5. Esvaziar-se para manter-se cheio/a

Nossa estrofe continua descendo mais um pouco. “Despojou-se de sua condição divina e assumiu a condição de escravo (doulou)”. Além do disparate de dizer que uma divindade tornou-se humana, o hino canta/diz mais. O que “era de natureza divina tornou-se escravo”.

“Fala-se aqui, portanto, de seu tornar-se humano, que não se constitui de mero disfarce — à diferença da mitologia grega onde os deuses vêm à terra em figura humana — mas é despojamento, desistência de sua posição e subsistências divinas. E é ele mesmo que se despoja, isto é, ele desiste voluntariamente, sem sofrer qualquer coação neste sentido. A perda da posição de Deus não vem sobre ele como uma sina, ele não é rebaixado, mas ele se rebaixou a si mesmo. Sendo seu caminho para as profundezas um caminho voluntário ele pode ser caracterizado como obediência. No mais ainda chama atenção que a sua condição de ser pessoa humana é caracterizada por “existência de escravo”. Isso não quer dizer que ele se teria tornado escravo em sentido sociológico; não se trata tampouco de uma alusão ao “servo” de YHWH de Is 53. Muito antes, a condição de ser pessoa humana já é entendida como ser escravo conforme já encontramos em outras partes do Novo Testamento e na Antiguidade posterior helenística. O ser humano está escravizado sob os poderes do destino, do pecado e da morte. O fato de Jesus se ter tornado humano não quer dar a entender que ele quisesse conhecer a existência humano em sua forma mais elevada e em sua beleza criatural, mas que ele tomou sobre si toda a existência humana escravizada na miséria e na morte e que se tornou solidário conosco aqui nas profundezas da nossa aflição.” (BARTH, 1983, p.46)

Não é tarefa simples (re)conhecer Deus nas “não-pessoas”. Numa sociedade escravagista, bem estratificada, onde “cada um/a deve estar e permanecer em seu quadradinho”, o ordenamento cristão, a assembléia de Deus (evkklhsia tou/ qeou/) aparece como algo subversivo. O escravo/a deve ser acolhido na igreja como igual: “talvez ele [Onésimo] tenha sido retirado de ti por um pouco de tempo, a fim de que o recuperasses para sempre, não mais como escravo, mas, bem melhor do que como escravo, como um irmão amado” (Fl 15–16). E a “condição do escravo/a” deve ser outra na igreja não somente porque de agora em diante “não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher” (Gl 1:28), mas porque o escravo deve ser reconhecido como o próprio Cristo. Não é fácil ainda reconhecer que Deus se manifesta também no pecado e na morte, cujo poder não domina mais depois da morte e ressurreição de Jesus (Rm 5–7).

“Dizes com quem andas que eu te direi quem és”. Esse ditado popular, mormente utilizado de maneira normatizadora e preconceituosa para manter “os/as bons/boas” longe dos/as ruins, também diz muito de Jesus e do grupo com quem ele andava, assim como dos lugares que frequentava. Deus assume em Jesus seu lugar no mundo. E esse lugar é o lugar de quem está em situação de vulnerabilidade, de quem está em situação de opressão e de desumanização.

Quando Abrão está em situação de fome e sem rumo na vida, Deus o “convoca” e vai com ele para um outro lugar (Gn 12:1–9); quando Abraão resolve colocar Sara, sua propriedade (esposa), em situação de perigo para “que não o matem”, Deus toma a defesa de Sara e lança pragas para o Faraó (Gn 12:10–20); quando Sara entra em conflito aberto com Agar e esta se afasta, Deus vai em socorro de Agar (Gn 16:1–16); quando Agar é expulsa de casa junto com seu filho Ismael e, não tendo mais esperança, deixa a criança para morrer no deserto, mesmo sendo Agar quem chora alto, Deus escuta o grito da criança e vai em seu socorro (Gn 21:1–21).

Os evangelhos oferecem como exemplo de discipulado/apostolado não os Doze. Eles são figura/tipo daquele/a que não entende (Mc 8:32; 9:32), que atrapalha a aproximação no primeiro momento (Lc 18:15), que está preocupado com o lugar do privilégio (Mc 10:35–38), que quer se apropriar do Reino (Mc 9:39–40), que o nega por medo, que não aceita as consequências do seu ministério (Jo 12,1–8). As mulheres, os/as doentes, as crianças, os excluídos/as são apresentados pela memória das igrejas como os/as que devem ser imitados. Os classificados/as como fracos/as e oprimidos/as vão ser o método, o caminho estruturante do seguimento de Jesus, o Cristo.

É do lado dessa gente que ele se coloca porque ele se identifica com elas. Ele é um deles/as. Nasceu empobrecido e marcado pela morte e discriminação. Assumiu um “outro poder” que não o de dominação e opressão. Aprendeu dessa realidade a escutar sua vocação. Quando um grupo se juntava a ele, procurava ensinar a viver essa vocação de maneira comprometida e solidária com as necessidades das pessoas excluídas pela religião e pelo sistema político/econômico. Seu ministério terapêutico atingiu aos que ele procurou e a ele mesmo. Ensinou aprendendo e aprendeu ao ensinar.

Precisou esvaziar-se de si mesmo por completo. Do privilégio, do poder-dominação, das verdades, da religião, da normatividade sócio-cultural. Temos um Deus que “depende”, que “precisa”, que “deseja”. Esse caminho espiritual da “kenosis”, do esvaziamento, permite a auto-compreensão de si mesmo/a e uma melhor leitura da vida e da Bíblia. Uma exigência do caminho do Reino. Desapegar-se de tudo aquilo que impede a comunidade de ser verdadeiro sacramento do Reino. Desapegar-se dos privilégios, da tentação diabólica da dominação, do diabo do preconceito (que além de ignorante é pecaminoso), dos caminhos violentos, das masculinidades hegemônicas que destroem relações.

6. Humilitas — caminho de obediência — fazer acontecer

Nossa segunda estrofe termina com o apelo a humildade. Jesus humilhou-se. É bom lembrar que “humildade” vem de “húmus”, ou seja, terra fértil. É de lá que, conforme o segundo relato da criação (Gn 2:4bss), viemos. Somos terrosas/os (do barro, da terra misturada com água). Somos “húmus”, naturalmente “humildes”. Não se trata de uma virtude moral, biblicamente falando. Trata-se de um caminho de vida, um jeito de organizar a vida. É uma característica da vida intimamente ligada com o carinho e o desejo de Deus para conosco. Jesus humilhou-se, desceu ao chão, reconheceu-se como um igual à humanidade. Foi solidário para com aqueles/as que estão abaixados, oprimidos, forçados ao chão, encurvados pela dominação do império ou dos chefes religiosos.

Alinhou-se com os que não tinham “poder”. Fez companhia aos/às hereges do seu tempo. Visitou Zaqueu (Lc 19:1–10), defendeu aquela que recusou ser objeto/coisa e acabou sendo pega “em fragrante adultério” (Jo 8:1–9), chamou publicanos para seu ministério (Mt 9:9–20), acolheu aquela mulher “impura” que tirou uma “força/dínamo” dele (Mc 5:25–34), foi convertido (nas ‘verdades’ e nas ações) por uma siro-fenícia — apontada por ele [Jesus] como “cachorrinho” (Mc 7:24–30), deixou-se beijar e acariciar por uma pecadora (Lc 7:36–50). Enfrentou o sofrimento e a morte (humilhação levada à última instância) como obediência à vontade de Deus. Não à vontade de ver seu filho morrer, mas à vontade de ver a vida triunfar, ver a verdade acontecer. Jesus foi a fala dos que não tinham fala, daqueles/as que não podiam sequer ser “ajudados/as” porque a religião não permitia (Jo 5:1–18; Lc 10:29–37). Jesus foi a misericórdia que faltava na “casa da misericórdia” — Betsaida (Jo 5:1–18).

Ele esteve ao lado de mulheres à beira da morte, tocou-as e deixou-se tocar, defendeu mulheres que ousaram (hereges!!!) questionar a norma e a lei que faziam delas objeto/coisa e que decidiram, por amor, não aceitar casamentos arranjados, negociações (dotes) sobre seus corpos, como a Sulamita de Cantares de Salomão e a mulher anônima do Evangelho de João, capítulo 8, tão injustamente estigmatizada como “a mulher adúltera”.

A humilhação do casal naquele episódio é paradigma de obediência à vida, a Deus. Jesus e aquela mulher foram obedientes, escutaram-se um ao outro. Os dois estavam sob júdice, os dois estavam com medo, os dois poderiam morrer ali. Mas foram fiéis e obedeceram até o fim ao preceito de que o ser humano é imagem e semelhança de Deus (Gn 1:26; Jo 12:45), de que a humanidade e a criação existem para a liberdade e para a glória de Deus, de que o pecado não é mais forte que a graça, ele não tem mais poder. “Ninguém condenou ninguém”.

Esta obediência leva à morte e morte na cruz. Foi assassinado como consequência de suas opções, atos e palavras, nunca por suas omissões. Consequência de suas escolhas (heresias) na contramão do seu tempo. Ser humilde e obediente significou para Jesus, e portanto deveria significar para seus/suas discípulos/as o mesmo, enfrentar os chefes religiosos e os chefes políticos de seu tempo. Significou enfrentar a incompreensão do seu grupo íntimo. Significou “aventurar-se” com os “pobres em espírito, os mansos, os aflitos, os que lutam pela justiça, os misericordiosos, os que promovem a paz e os perseguidos por causa da justiça (Mt 5:1–10).

Por isso a ceia é tão importante em nossa tradição teológica, espiritual e litúrgica. A ceia é para nos recordar (fazer memória) da Vida, Sofrimento, Morte e Ressurreição de Jesus. É para celebrar o feito e o “ainda por fazer”. A ceia é ato político estruturante da economia da salvação. Ela transforma a sociedade. A ceia é critério de veracidade das Igrejas e do discipulado. Estamos “fazendo ISTO” conforme Jesus pediu que fizéssemos? “Façam ISTO em memória de mim” (Lc 22:19). Em muitos aspectos transformamos o “isto” em encenação ritualística vazia. O “ISTO” significa expressar na vida o que cantamos no Hino: humilhou-se a si mesmo e foi obediente até a morte de cruz. O “ISTO” necessariamente é a vida doada expressa na partilha do Pão e do Vinho, na mesa aberta (a) para todos e todas (cf. o debate construído em Mc 7:24–30 e ladeado literariamente pelos relatos das multiplicações de pães — Mc 6:30–44 e Mc 8:1–10).

Partilhar o pão, distribuir o vinho, estender a mão a qualquer vizinho

Alargar o chão, retirar o espinho; abraçar o/a irmão/ã, não ficar sozinho

Jesus, em qualquer parte, é mais que fome e rito;

É pão que se reparte num mundo injusto, aflito.

(A Ceia do Senhor, Jaci Maraschin)

7. Espiritualidade do Reino — o Nome de Jesus — seu “senhorio” — alegria e glória

A terceira estrofe completa o movimento. Do abaixamento para a glória, para a elevação. Vem de Deus para voltar para Deus. Em consonância com o hino podemos tranquilamente recordar uma outra peça litúrgica de fundamental importância para a espiritualidade e eclesiologia cristãs: o Magnificat, o Canto de Maria.

“A humildade de Maria neste poema não é a humildade dos mansos e apoucados. Trata-se de um canto exuberante de triunfo para agradecer a Deus por subsanar todos os males ao optar a favor dos indefesos em vez dos poderosos. Ninguém ainda o sabe, mas os pobres, os famintos e os humilhados venceram! E esta desconhecida de catorze anos é sua inesperada representante. Não é preciso ser freudiano para perceber a agressividade tácita nas palavras de Maria: meu filho triunfará, inverterá e desagravará todas as nossas humilhações anteriores; nosso povo será exaltado nele… eu serei a origem de tudo isso” (CAHILL, 1999, apud. VELASCO, 2003, p. 15–16).

A alma que engrandece é a mesma que se humilha, não do jeito que os/as poderosos/as desejam, com silêncio, submissão e permissividade, mas com poder, força e militância. Na fraqueza organizada é que encontramos a fortaleza de Deus; em outras palavras, quando nos reconhecemos “fracos é aí que somos fortes” (2Cor 12:10). Mas não há “caminho de subida, não há caminho para o reino de Deus que não seja passando pela humilhação. Deus subordinou a exaltação ao caminho da cruz. O caminho da cruz é a etapa inevitável para Cristo e todos os que querem participar do seu reino” (COMBLIN, 1992, p. 42).

Essa opção de esvaziar-se, obedecer até a morte de cruz concedeu a Jesus a glorificação de seu nome: ele é o Senhor, acima de todos os nomes. Temos um problema de vocativo aqui. Esse “nome” de Jesus como “Senhor, Lord, Kyrios” não combina com o Jesus de Nazaré, empobrecido e marginalizado no seu tempo, assassinado e pisado pelos que dominavam o mundo.

Chama a atenção para o caráter indefinível da exaltação de Jesus. Deus agraciou Jesus com um “nome”, o Senhor: título específico de Deus! Dá impressão, neste momento, que estamos assistindo a um rito de proclamação de um rei: Jesus se torna o Senhor do Universo e recebe a homenagem dos seus súditos, que se ajoelham diante dele e o aclamam, reconhecendo seu senhorio universal. Mais ainda: parece uma liturgia, bem ao estilo dos salmos reais do Antigo Testamento: “para a glória de Deus Pai”. As comunidades cristãs precisavam entender o paradoxo: Jesus, homem, escravo, morto na cruz é o mesmo Senhor do Universo e da História. Ele é cem por cento homem e cem por cento Deus. Dentro dos limites de sua humanidade, os cantores deste hino (os primeiros cristãos, os escravos e nós hoje) precisarão compreender que o Jesus “obediente” ao Pai foi fiel ao projeto de Deus. Por isso, o Pai o exaltou após a sua morte constituindo-o Senhor do mundo e assim realizou seu plano salvador e libertador”. (CEBI-GO, 2009, p. 30)

A palavra da Cruz nos coloca a todos e todas no mesmo patamar. Todos/as experimentamos a cruz do cotidiano. O desafio é assumi-la e dar um significado reinocêntrico a ela. Esta parte da herança de Jesus — Reino / Cruz é a radicalidade exigida e esperada de quem é batizado/a. Esta singular radicalidade dos chamados de Jesus concretiza-se na exigência de obediência absoluta ou de entrega incondicional que deverá articular-se historicamente em uma série de renúncias radicais. É o efeito dominó. Na realidade, torna-se necessário renunciar a tudo para fixar bem as sólidas estruturas do seguimento real (cf. Lc 14:28–33; Mt 13:44–46). A fonte (Q) insiste mais na renúncia à família; Mc e Lc insistem de forma especial na renúncia aos bens materiais; Mt e também Jo, na renúncia ao apego à própria vida. Porém, do que se trata, em definitivo, é de renunciar a tudo que possa impedir o seguimento a Jesus e de colocar-se inteiramente ao serviço do Reino. Temos que ser UM (de coração unificado — centrados — não dispersos):

- renúncia ao dinheiro e aos bens materiais deste mundo (cf. Mt 6:24; Lc 18:22);

- renúncia ao apego a nós próprios, à própria vida (cf. Mt 10:39,e 16:24 e par.; Jo 12:24); Mt 10:39 e 16:24;

- renúncia à instalação cômoda (cf. Lc 9:57–58);

- renúncia às vinculações familiares que possam impedir ou atrapalhar o seguimento (cf. Lc 9:59–62; Mt 10:35–38 e par.

Com razão pode-se dizer que este modo de Jesus chamar os/as seus/suas seguidores/as nos confronta conosco mesmos/as e com o estado atual da vida cotidiana. Estar com Jesus exige um desapego que não estamos acostumados/as a viver. Não é por acaso que os relatos de vocação e, especialmente o bloco central do Evangelho de Lucas e os primeiros capítulos de Atos dos Apóstolos, estão repletos dessa discussão que gira em torno do desapego para a missão, do abandono para o Reino. Infelizmente, na maior parte do tempo são só temas para encontros e retiros ou textos acadêmicos, não entram na vida cotidiana, não transformam a realidade de ninguém, nem da sociedade.

8. Estar com Ele e assumir sua causa e seu destino — Cantar o batismo

“A espiritualidade é um caminhar em liberdade segundo o Espírito de amor e de vida. Essa caminhada tem seu ponto de partida em um encontro com o Senhor… o encontro é marcado pela iniciativa divina.” (GUTIERREZ, 2000, p.50)

Jesus convida seus seguidores a estarem com Ele (cf. Mc 3:14), a manterem-se ao seu lado (cf. Lc, 22:28), a partilharem seu estilo próprio de vida, itinerante e desinstalado (cf. Mc 6:8ss e par.; Lc 9:57 -58), e a seguirem em todo momento o seu exemplo (cf Jo 13:15; 14:6). O seguimento de Jesus implica, em primeiro lugar, a comunhão com Ele (na sua vida, sofrimento, morte e ressurreição), “assemelhar-se a Ele”, ter suas as mesmas atitudes e sentimentos (cf. Fil 2:5), ser santos como Ele foi (cf. 1Pe 1:15–16), proceder como Ele procedeu (1Jo 2:6), seguindo suas pegadas a todo momento (cf. 1Pe1:21–22).

Mas, para o seguidor/a de Jesus, esse estar com Ele e comungar com seus sentimentos e atitudes de vida é inseparável de seu ser enviado à missão de ser “pescadores de homens e mulheres” (cf. Mc 1:17 e par.), de proclamar com palavras e sinais que o Reino já é chegado como presença salvífica e libertadora, que cura os enfermos, expulsa os demônios, liberta os cativos e é bem-aventurança para os pobres (cf. Lc 9:1–6; 10:2–12; Mt 10:1–16; Mc 6:7–13). O seguimento é essencialmente tarefa, encargo, missão, prática salvífico-libertadora, comunhão com a causa de Jesus em servir ao Reino. Exige, inclusive, a disponibilidade para participar também em seu próprio destino, assumindo a inevitável conflitividade e perseguição, isto é, carregando a cruz até o fim (cf. Mc 8:5; Mt 10:16–18,21–25,38–39; Lc 14:27; Jo 12:24–26).

Mas isso não estava entendido previamente pela comunidade. Houve um desentendimento no que significava a messianidade de Jesus, bem como o seguimento dele. A comunidade cristã, ainda hoje, tem muitos problemas teológicos e espirituais de compreender a Cruz dentro da economia da salvação. Normalmente se deseja somente um pedaço de Jesus. Ou se acentua em demasia sua vida e sua obra ou se confunde ressurreição com imaterialidade e com irrealidade. Das duas formas nós somos arrancados dos processos históricos, onde deveríamos viver essa espiritualidade cristã.

Nos evangelhos há uma insistência em repetir para a comunidade o fato do destino de Jesus ser a cruz. Destino não porque ‘já estava escrito’, mas porque esse era e é o resultado de todo aquele/a que se compromete com a aliança. A cruz é consequência inalienável da vida cristã. Já desde a encarnação de Deus em Jesus temos esse anúncio estabelecido. Já desde o seu nascimento Jesus incomodava os chefes religiosos e políticos de sua época. Não era necessário ser muito adivinho para perceber que a consequência da vida de Jesus seria o sofrimento, a exclusão e a cruz.

9. Inscrever nas nossas vidas o hino de Cristo — para baixo e avante…

Como caracterizar a espiritualidade que tem como experiência — fonte o encontro com Deus que acontece, sempre pela força do Espírito, no seguimento de Jesus de que estamos falando? Quais são os traços que especificam uma espiritualidade que está vinculada ou que tem sua força inspiradora na solidariedade beligerante com a causa justa dos pobres, vivida com o espírito das bem-aventuranças evangélicas no horizonte de esperança no qual se situa a ressurreição?

A espiritualidade não pode ser algo que aliena da realidade que nos rodeia mas, ao contrário, vincula -se estreitamente a ela, até ao ponto de ter como pressuposto fundamental a honradez e a fidelidade para com a verdade do real e a mais radical de suas exigências: sua transformação libertadora (cf. Rom 8:18–24). Como adverte repetidamente J. Sobrino, parafraseando a Paulo, a falta de honradez com o real leva a aprisionar sua verdade na injustiça (cf. Rom 1:18 ss) e priva a criatura e a igreja de sua “capacidade de ser sacramento da transcendência e de desencadear história de maneira correta”. E como uma “fundamental ou radical desonestidade” que confere pés de barro a tudo que se edifique sobre ela, embora tenha aparência de sublime, isso impossibilita o surgimento de uma verdadeira espiritualidade. A espiritualidade do seguimento que aqui reivindicamos edifica-se a partir de uma relação honrada e honesta com a realidade, permitindo, com “castidade intelectual”, escutar suas demandas e clamores de justiça, captar sua verdade e suas exigências de plenitude libertadora e, ainda, responder-lhes com fidelidade, combatendo tudo quanto de negativo e maldição possa existir nessa mesma realidade, fomentando ou potenciando o que existe de positivo e de promessa (SOBRINO, 1985, p.4–8).

A espiritualidade que tem por premissa fundamental a escuta e a obediência será chamada por muitos místicos e teólogos/as de espiritualidade que vem de baixo (GRÜN, 2004, p.19–29). Esta consciência espiritual revela a premissa fundamental da teologia da revelação, que é a que Deus sempre toma a iniciativa. Deus vem visitar o seu povo e escolhe falar com ele diretamente. Fez isso através dos profetas antigamente (cf. Hebreus) e depois através de seu filho Jesus. Para João essa horizontalidade koinonica é critério estruturante da fé no Deus da vida. “Quem diz que ama a Deus que não vê e não ama seu irmão que vê é um mentiroso” (1Jo 3:20). Deus é amor, é relação de amor. É só ali que podemos perceber e entrar no mistério da sua presença e graça.

Para escutar Deus é necessário assumirmos nossa humanidade, seguindo o exemplo dele. Encarnou-se como carne, como gente, como ser humano. Não é pecado ser gente. As fraquezas são só fraquezas, não “defeitos de fábrica” que precisam ser ‘consertados’. Fazem parte da nossa humanidade, do nosso jeito de estar no mundo. E é só assumindo esta realidade que vamos poder falar de uma realidade transcendental. A cruz é o maior paradoxo que podemos encarar na tradição cristã. A Cruz é ao mesmo tempo sinal de sofrimento/morte e vida/ressurreição. Como pode ser isso? Como pode a fraqueza e a derrota se transformar em fortaleza e vitória?

Aqui não se trata apenas de ouvir a voz de Deus naquilo que eu penso e sinto, nas minhas paixões e enfermidades… também não se trata de apenas subir a Deus descendo à minha realidade. Trata-se de estar, a partir das minhas possibilidades, disponível a um estado de relação. Estar dispostos e dispostas a ‘dar um salto na escuridão da noite’ (cf. João da Cruz), a viver na insegurança e nas incertezas, num estado de dependência desconfortável. Trata-se de estar dispostos/as a ir além das palavras, ou seja, de dialogar. E o primeiro diálogo no encontro com o sagrado é o dialogo com as nossas fraquezas. Evagrio Pontico vai dizer que se queres conhecer a Deus tens que conhecer a ti mesmo. A tradição monástica vai nos ensinar (o que a Bíblia já nos disse muitas vezes) que a verdadeira oração surge das misérias e fraquezas, não das virtudes.

Na abertura interrogativa à provocação da realidade e suas exigências de mudança e, mais concretamente, na conversão à provocação do pobre e de seu clamor, nos abrimos à provocação do Deus transcendente. Na alteridade do outro (especialmente o outro que mais necessita) sai-nos ao encontro a alteridade do Deus transcendente, o radicalmente “Outro”, com maiúscula, que exige de nós um processo sempre inacabado de conversão. Cumpre, porém, precisar mais na linha do seguimento tal como o temos especificado. A solidariedade amorosa com o “outro” empobrecido, se quiser ser real e operativa, tem que traduzir-se em participação em processos de luta libertadora. Esta participação, expressão histórica do amor, em uma realidade marcada pelo conflito, é que constitui o lugar privilegiado de acesso ao mistério do Deus transcendente, porquanto introduz uma dinâmica histórica que se transcende a si mesma na medida em que reclama que se assuma uma tarefa de transformação nunca terminada. Ela é a mediação mais apta para encontrar-se com a realidade última que a tudo transcende porque carrega em seu bojo a exigência de um “plus” inesgotável de humanização, de busca e desinstalação permanentes e de radical disponibilidade, de abertura ao futuro e à sua novidade inacabável e insuspeitável, de imersão em um processo inacabado e permanente de conversão. Em definitivo, leva em si a exigência daquela mudança e ruptura que permitem passar do ser ao dever-se, de nossos caminhos para os caminhos de Deus. A prática da justiça é o lugar preferencial que possibilita, sem enganos, ascender ao mistério de Deus e a Deus, precisamente, enquanto mistério último que nos transcende sempre e nos urge na entrega incondicional, inclusive a dar a vida pelos outros (Verdade única de Deus — a entrega incondicional simbolizada pela ceia e testemunhada pela Cruz).

Aqui cumprem um papel fundamental a catequese e a liturgia. São dois aspectos da vida da Igreja que, juntamente com a organização e prática da comunidade, devem nos levar a conhecer a Deus e não simplesmente a cumprir os ritos que supostamente nos levariam a ele. O conhecimento (ou melhor, o reconhecimento) de Deus é feito quando nós nos deparamos com ele do jeito que nós somos. A liturgia, em especial, é o espaço privilegiado da celebração da verdade (do não-esquecimento). Porém não de qualquer verdade, mas daquela que é a Verdade de Deus, conforme já citei acima. É o lugar onde o símbolo e o rito, o espaço e a palavra falada, tornam-se não mais instrumento simplesmente de acesso ao sagrado, mas tornam-se expressão do amor apaixonado que irradia de Deus e atinge a todo o mundo. Como podemos ajudar a comunidade onde vivemos a viver isso de maneira humilde e serviçal? Como podemos ajudar a comunidade onde vivemos a se descobrir necessitada de Deus e de libertação? Como podemos envolver nossas igrejas numa espiritualidade que não seja mais falaciosa nem egocêntrica.

A experiência do Reino e da Misericórdia de Deus, portanto da Revelação de Deus em Jesus, sempre vai nos recordar que a vida, sofrimento, alegrias, morte e ressurreição dele foi uma vida de excentricidades, de sempre para fora de si mesmo.

O triste episódio da estudante Geyse Arruda não é um caso isolado. Foi para a mídia porque era uma mulher da universidade… se fosse uma pobre qualquer não tenho certeza se teria essa repercussão toda. Provavelmente seria duplamente oprimida, por ser pobre e por ser mulher. Mas, o fato é que expressa o espírito (a espiritualidade) encarcerado no círculo de violências e de moralismos convenientes e ofuscantes da realidade. Corpos diferentes parecem que não tem lugar numa sociedade matizada pelo “normal” e pelo “bom costume”. Pouca gente se posicionou contra a “histeria” coletiva que acometeu os/as colegas pelos corredores.

O corpo, esse lugar e espaço não dócil ou formatado que não se enquadra nos espaços das oficialidades do saber e do poder, do sagrado e do conhecimento, ou de ambos aliados. O corpo estranho que Deus escolheu como morada, apresentando-se como humano, servo, escravo não teve lugar nos cânones do império ou da religião hegemônica. Não houve espaço para diferenças e para o diálogo. Só acusações e reuniões para articular como fazê-lo acusar-se e de como matá-lo. Não houve lugar para os corpos que se aliaram a ele.

Mas são também esses corpos inscritos na partitura desse hino, na melodia entoada pelos céus e pela terra. São corpos doentes e “imperfeitos” (como a norma oprime e explora, além de excluir e estigmatizar), corpos violentados e violentadores, corpos com vestidos rosa (claro, porque os corpos sem camisa não seriam alvo da violência), corpos transexuados, corpos sem banho. Corpos aprisionados pelas “certezas” e também pelas grades da prisão. Corpos impedidos de chegar à ceia do Senhor e aqueles interditados pelas “travas dos nossos olhos e impurezas que saem pela boca”.

Mas “mesmo as trevas, não são trevas, pois para ti a noite é luminosa como o dia” (Sl 139). E a graça de Deus é sempre “de graça”.

Gostaria de continuar a provocação com uma música de Raul Seixas, retirada da espiritualidade de São João da Cruz.

Água Viva

Eu conheço bem a fonte

Que desce aquele monte

Ainda que seja de noite

Nessa fonte está escondida

O segredo dessa vida

Ainda que seja de noite

“Êta” fonte mais estranha

Que desce pela montanha

Ainda que seja de noite

Sei que não podia ser mais bela

Que os céus e a terra, bebem dela

Ainda que seja de noite

Sei que são caudalosas as correntes

Que regam os céus, infernos

Regam gentes

Ainda que seja de noite

Aqui se está chamando as criaturas

Que desta água se fartam mesmo

às escuras

Ainda que seja de noite

Ainda que seja de noite

Eu conheço bem a fonte

Que desce daquele monte

Ainda que seja de noite

Porque ainda é de noite

No dia claro dessa noite

Porque ainda é de noite

REFERÊNCIAS

ALVES, R. Variações sobre a vida e a morte ou O Feitiço erótico-herético da teologia. São Paulo: Loyola, 2005.

ALVES, R. Creio da Ressurreição do Corpo. Meditações. São Paulo: Paulus, 2006.

BABUT, E. O Deus poderosamente fraco da Bíblia. São Paulo: Loyola, 2001.

BARTH, G. A Carta aos Filipenses. São Leopoldo: Sinodal, 1983.

CEBI-GO. O Evangelho Encarnado, um anúncio aos pobres. Círculos Biblicos sobre a Carta de Paulo aos Filipeneses. São Leopoldo: CEBI, 2009

COMBLIN, J. Epístola aos Filipenses. Petrópolis: Vozes e São Leopoldo: Sinodal, 1992.

GRÜN, A. e DUFNER, M. Espiritualidade a partir de si mesmo. Petrópolis: Vozes, 2004.

PEREIRA, N. Sagrados Corpos. In: Ribla 38. Petrópolis: Vozes, 2001.

TEIXEIRA, F. Espiritualidade do Seguimento. São Paulo: Paulinas, 1994.

VELASCO, C. Maria e Isabel — diálogo entre mulheres. In: Ribla 46. Petrópolis: Vozes, 2003.

REBLIN, I. Outros cheiros, outros sabores… o pensamento teológico de Rubem Alves. São Leopoldo: Oikos, 2009

SOBRINO, J. Espiritualidad de Jesús y espiritualidad de Ia liberación. In: Espiritualidad de Ia liberación. Madrid, 1985

VOIGT, E. Graça e alegria entre o vazio e o cheio. Comentário sobre a Carta de Paulo aos Filipenses. São Leopoldo: CEBI, 2009

Paulo Ueti

pauloueti@gmail.com

Brasília — DF

[i] Teólogo biblista, membro do CEBI, professor de Novo Testamento em Brasília-DF e no Curso Latu Sensu de História do Cristianismo Antigo (NER/UnB), membro fundador da ABIB-Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica.

[ii] Também o título de um Livro de Rubem Alves.

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Paulo Ueti

Bible Scholar, Anglican Alliance Facilitator, Researcher on Biblical Studies, living in Brasilia — Brazil most of the time, traveling a lot.