Encontros e desencontros que transformam

Paulo Ueti
17 min readDec 9, 2020

Mutatis Mutandis luta e transgressão como conspiração evangélica

Paulo Ueti[i]

“… há um lugar onde a matéria se comove ao ouvir a palavra: é o corpo.

O corpo é o centro mágico do universo.

O corpo é mágico porque é feito de palavras:

‘… e a Palavra se fez carne…’

O corpo nasce do casamento entre carne e palavras.

Quando carne e palavras fazem amor, nasce o corpo.”

(Rubem Alves)

1. Introdução

Entre tantas conversações/conversões com a Palavra (criação de Deus plenificada em Jesus, aquele de Nazaré) e as palavras que pronunciamos e escutamos, repetimos ou recriamos nasceu esta reflexão. Estive, estou e estarei sempre envolto também nos subprodutos desses primeiros movimentos acima: encontros, desencontros, transformações, decepções e criatividade. E ainda o resultado da alquimia desses subprodutos: conflitos, transgressões, medo, possibilidades, desejos, censuras, vida plena.

Essa conversa é parte de uma conversa maior sobre culturas, diálogos, salvação/cura/saúde, militância, esperança, resiliência e movimento. E na América Latina, nossa “Pátria Grande”, não se pode falar a palavra movimento e resiliência sem imaginar (trazer para estética a memória) o Movimento dos Sem Terra, sem moradia, sem vida digna de ser vivida; movimento pela saúde pública, pela democracia, pela garantia de direitos fundamentais, movimentos contra intolerâncias religiosas, culturais, contra pensamentos e práticas homofóbicas, sexistas, totalitaristas e etnocêntricas que geral exclusões, violência e morte. Exclusão dos direitos fundamentais, dos direitos à mesa (da Eucaristia/comunidade mas também do alimento e da sobrevivência). Movimentos de e pela libertação. Movimentos contra todos os que querem impor “uma só língua/linguagem/comportamento para dominar o mundo”, contra a privatização dos sistemas públicos e o estabelecimento de uma sociedade de privilégios, contra as opressões que impomos e das quais somos também vítimas.

Minha reflexão, obviamente, é fruto da minha própria história, dos traços de diferentes culturas que habitam meu ser e de muitos anos de escuta de Deus na Igreja e no mundo e de Leitura Popular (leia-se aqui espiritual, engajada e política) da Bíblia. É fruto da consciência de que somos todas/os imersos nas diferentes culturas do mundo e que nós, latino-americanas/os, e brasileiras/os especialmente, somos gente mestiça, sincrética e plural. Carregamos em nossas falas e em nossos corpos sementes do verbo que se fez carne e habitou entre nós, entre todos nós e não somente num ambiente ou cultura privilegiada. Se há algum privilégio aqui ele é ético e epistemológico somente, pois escutamos a Deus e aprendemos dele e com ele a partir da periferia do mundo, dos crucificados e dos mais vulneráveis.

2. O poder da Palavra e do encontro

Há um dito popular, extremamente equivocado e repetido para dominar consciências e prevenir transformações, que diz que “a primeira impressão é a que fica”. Obviamente, se somos atentos ao cotidiano e acostumados a fazer memória da nossa vida e das nossas relações com pessoas, lugares, coisas, chegamos a conclusão simples de que isso não procede, quando nos dispomos a um segundo encontro, olhada, observação. A primeira impressão é certamente a que primeiramente muda, transforma-se em outra impressão. O que não muda é o fato de ser “impressão”. Algo que fica impresso, inscrito na gente a partir das relações.

Para gente religiosa a Palavra/palavra e o encontro têm muito poder. Uso “Palavra” aqui em sentido amplo, espiritual e teológico. Palavra é tecido, emaranhado de fios entrelaçados e interdependentes, é encontro e relação, acontecimento e contradição. Tem o poder de libertar e de dominar. Para quem lê ou conhece as histórias bíblicas é mais evidente. Já no primeiro capítulo do livro das origens (Gênesis) podemos escutar o poema/canção dizendo que quando Deus pronuncia uma palavra, algo de extraordinário acontece. O mundo é criado, há ordenamento, há cosmética. Isso é importante notar: fala = acontecimento. Quando falamos não estamos simplesmente decodificando algo de nosso cérebro para comunicar. Não falamos simplesmente com sons e com a boca. Quando falamos também produzimos uma realidade, somos capazes de transformar (alquimizar) o mundo e nós mesmos. Do mesmo jeito que Deus o fez. Essa cosmética provinda de Deus é plural, diversa, na forma e nos conteúdos.

Com essa memória estabelecida podemos percorrer então vários textos bíblicos e acontecimentos da vida. Quanta palavra pronunciada e quantos encontros foram responsáveis pela morte, destruição, opressão e exclusão. Quanta palavra pronunciada fez exatamente o contrário: aliviou, libertou, incluiu, reconheceu, empoderou. Que palavra nós carregamos e compartilhamos? Que projeto político (de bem comum) está incluído nas nossas escolhas de palavras e de contextos para pronunciá-las (criar/transformar realidades)?

Não se pode ler esse texto (e tantos outros claro) como latinoamericanos sem reconhecer nossa história marcada por desencontros, violências e genocídio cultural. Não estamos acostumados ao diálogo e tolerância, nem a escuta e humildade. A espada e o evangelho vieram juntos para a América Latina. Além de virem juntos, o evangelho sustentou a espada contra índígenas e negros. Acredito que ainda esse espírito etnocentrista em termos de moral, religião e cultura ainda permaneçam presentes em nossas teologias, espiritualidades e práticas pastorais, pra quem as faz.

Conforme BEOZZO, historiador e membro do CEHILA (Centro de Estudos da História da Igreja Latinoamericana), “um poema maia, do Quiché guatemalteco, logo após sua derrota frente a Alvarado, em 1528, exprime muito bem o que esteve em jogo na Conquista e como esta foi percebida pelos povos indígenas: não apenas como derrota militar, subjugação política, exploração econômica, mas também como desastre cultural. No Quiché, ao contrário de Tenochtitlán, os espanhóis já não são mais vistos como encarnação dos deuses e sim como “dzules”, estrangeiros e invasores e há uma clara percepção e condenação da brutalidade e do etnocentrismo da colonização e do modelo de evangelização que a acompanhou. O poema vale-se do simbolismo das flores que, no mundo maia, são o simbolismo mais alto da cultura e de suas expressões: ‘Vieram fazer as flores murcharem. Para que sua flor vivesse, danificaram e engoliram nossa’”.

Ainda pensando que a Palavra tem poder, Rubem Alves gosta de um conto que compartilho com vocês.

Lembro-me de um cavalheiro, educado num mundo de proibições alimentares, que aprendera a detestar miolo sem nunca haver provado um. Foi jantar em uma casa em que foi servida couve-flor empanada. Após a refeição dirigiu um elogio à anfritriã:

- Divina, a couve-flor…

- Couve-flor? O senhor se enganou. É miolo empanado…

E, sem que tivesse havido uma única alteração nos componentes físico-químicos da situação, a linguagem que envolvia o corpo se encrespou, e a educação do hóspede se transformou em palidez de um corpo cujo estômago vem à boca, seguida da corrida inevitável ao banheiro, para vomitar.

Vomitar o que?

Miolo?

Absolutamente.

Vômito de palavras, rótulos, etiquetas.” (ALVES, 2005, p.61–62).

A comunidade de Mateus quis deixar essa lembrança forte para todo mundo, lembrando que “o ser humano não vive somente do pão, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4,4). E tomando do nosso texto temos a declaração de fé final de Jesus: “Pelo que disseste, vai: o demônio saiu da tua filha”. Fruto do encontro conflitivo desta mulher com Jesus, de Jesus com essa mulher. tudo se transformou. A mulher, Jesus, a filha. Se olhamos o texto de Mateus descobrimos que um grupo não mudou: os discípulos. Que gente de cabeça dura.

3. Nosso texto

Para chegar ao texto bíblico passamos primeiro pelo “tecido da vida”. Textura complexa cheia de arte e beleza. Coisas públicas, outras não. Falas possíveis, falas interditadas e proibidas, realidades que acontecem e frutificam e outras que são impedidas de aparecerem (controle social, medo, tabu, normatização). Os contextos latinoamericanos nos impeliram a perguntar como o salmista “Até quando Senhor” (Sl 13)?

Tomamos a história de uma mulher siro-fenícia. Aqui me debruço sobre a versão de Marcos, mais curta e direta. Encontramos essa mesma memória, com alguns acréscimos e particularidades da comunidade eclesial que manteve a memória, no Evangelho de Mateus.

Essa mulher, que não tem nome, soube que um homem poderoso em palavras e ações (um taumaturgo) estava nas redondezas e resolveu procurá-lo para ajudar sua filhinha que estava possuída por um espírito impuro. Não se sabe bem do que ela sofria. Estar com “espírito impuro” pode ser estar em situação de doença ou estar impedida (na perspectiva da lei judaica — Levítico) de participar da vida social. De qualquer maneira, em nosso texto temos uma mãe em busca de cura para sua filha.

O texto de que estamos falando é o relatado em Marcos 7,24–30.

v. 24. Saindo dali, foi para o território de Tiro. Entrou numa casa e não queria que ninguém soubesse, mas não conseguiu permanecer oculto.

25–26 A

Pois, logo em seguida, uma mulher cuja filha tinha um espírito impuro ouvir falar dele, veio e atirou-se a seus pés. A mulher era grega, siro-fenícia de nascimento, e lhe rogava que expulsasse o demônio de sua filha.

27 B

Ele dizia: “Deixa que primeiro os filhos se saciem porque não é bom tirar o pão dos filhos e atirá-los aos cachorrinhos”.

28 C

Ela, porém lhe respondeu: “É verdade, Senhor; mas também os cachorrinhos comem, debaixo da mesa, as migalhas das crianças!”

29 B’

E ele disse-lhe: “Pelo que disseste, vai: o demônio saiu da tua filha”.

30 A’

Ela voltou para casa e encontrou a criança atirada sobre a cama. E o demônio tinha ido embora.

A estrutura do texto parece interessante. Alguns destaques:

1. Normalmente, quando lê-se esse texto, costuma-se chamar essa mulher de estrangeira. Pelo fato do autor ter mencionado esse detalhe parece que ele é relevante neste contexto literário e narrativo. Ela é síro-fenícia, grega de cultura. Mas o interessante é que, do ponto de vista textual e geográfico, o estrangeiro ali é Jesus. Toda a cena ocorre fora do país de Jesus. Ele é quem está fora de seu país e inserido numa região de outra cultura dominante. Neste política de leitura tradicional parece que sempre olhamos o texto com os olhos e os pés de Jesus, o judeu. Mesmo que o arranjo literário não o faça. Por isso ainda denominamos essa mulher de “estrangeira”.

2. É expresso o interesse dos redatores em dar destaque a essas duas mulheres — a filha e a mãe — ambas sem nome. A cena é apresentada como o encontro, não muito amigável no início, entre duas pessoas que normalmente sequer trocariam olhares, quanto mais estabeleceriam diá-logo. Para os judeus, os não judeus eram considerados ‘cães’. Mesmo assim o encontro acontece. Há um debate, aparentemente entre desiguais, mas quando analisamos o discurso ali posto, percebemos um debate onde os dois estão no mesmo nível de conversa em termos de técnicas e de conteúdo.

3. A conversa se desenrola por causa da expectativa desta mulher sobre aquele homem, da enfermidade da filha e da ousadia dessa mulher de interromper o desejo de Jesus de manter-se em segredo. É dela a fala de enfrentamento com o homem que não quer dar atenção ao seu pedido e à sua necessidade. No texto de Mateus ela “grita”. Imaginem a cena constrangedora de uma mulher gritando para alguém que de propósito queria manter-se anônimo. Jesus ao ser confrontado tem que expressar sua posição, provinda de sua tradição cultural, do que ele aprendeu quando era criança e do jeito que foi forjado durante sua vida em termos de relações, religião, fé e militância.

4. Jesus foi judeu. Nasceu, cresceu e viveu toda sua vida no ambiente da religião e cultura judaica. Muitos rituais, normas e costumes eram vividos não somente como consenso moral, mas como vontade de Deus. Era a fé em Deus que os modelava daquele jeito. Foram instrumentos muito importantes durante séculos e durante muitas crises para manter o povo unido e com identidade própria. Mas isso pode também ser um fator de estranhamento e de violência interna e externa. Uma cultura, tradição e religião corre o risco de ensimesmar-se, de fechar-se ao invés de cumprir sua vocação primeira que é a de orientar a vida cotidiana. Aconteceu no tempo de Jesus. Muita gente não mais entendia o espírito da norma e só aplicava a frieza da lei. Jesus criticou isso fortemente. Mas também foi vítima disso, como podemos ver no nosso episódio aqui nos textos de Marcos e Mateus.

5. Voltando ao enredo do nosso texto é interessante também os assuntos que permeiam o diá-logo deste casal: gente diferente de cultura diferente, encontros entre gente desigual, espírito impuro/necessidade, pão/migalhas, acima da mesa/abaixo da mesa. Parecem duas pessoas conversando sobre assuntos diversos e não conexos. A mulher, grega de formação, com sua necessidade (cura da filha, expulsão do demônio, ter a filha de volta, ter ajuda, inscrever-se no universo linguístico de Jesus). Jesus com sua intransigência cultural (etnocêntrico e intolerante) e uma postura excludente e exclusivista em relação ao pão e à mesa. No evangelho de Mateus ainda temos os discípulos pedindo que Jesus a “despeça” logo (que pode significar “atender” ou “mandar embora sem atender” — mas de qualquer maneira temos intermediários incomodados com essa relação entre gente diferente. Na comunidade de Mateus parece que ela “não deveria ter direito” de acesso a mesa/Jesus. A questão fundamental desenvolvida com propriedade pela mulher (ela é uma excelente utilizadora da técnica da retórica, é: quem tem acesso a Jesus? Quem pode chegar ao pão? Serão somente os filhos de Israel, os do clube de Jesus e dos discípulos, os “que estão preparadas/os”? Os dois textos indicam que esse era o pensamento e a palavra (ação) de Jesus. A mulher não aceitou essa “norma”. Ela não gostou de viver no mundo dos normais, onde era isso que acontecia. Ela transgrediu a linguagem homogênea e dominadora da cultura, tradição e religião judaica e fez esse homem mudar de opinião, o que o levou a mudar de atitude. Ela produziu conhecimento, estabelecer as bases de uma nova possibilidade epistemológica.

6. Também parece interessante que este texto e esta conversa encontram-se, em termos de contexto literário dentro da narrativa evangélica, entre dois outros textos que mencionam pão. Parece que a história da mulher siro-fenícia que estava discutindo com Jesus sobre quem pode acessar o pão ou obter a cura resultou na necessidade de recontar a primeira história da multiplicação com um outro final para firmar que todas as pessoas têm acesso a Jesus.

Mc 6 Primeira multiplicação dos pães em território judeu

Marcos 7 Nossa história conflitiva sobre quem pode acessar Jesus/pão/migalhas

Mc 8 Segunda multiplicação dos pães em território não judeu

TODOS TÊM ACESSO A JESUS/MESA/COMUNHÃO/COMUNIDADE/DIÁLOGO

“Não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher, todos são um em Cristo Jesus” (Gl 3,28)

5. O acesso a Jesus, ao pão/migalhas que caem da mesa, está relacionado com a situação da possibilidade de encontros e desencontros de gente de culturas diferentes, com léxicos diversos, com necessidades mútuas e desejos eróticos de aprender uns dos outros. Por isso nosso episódio dá tanta ênfase a cultura e a geografia dos dois personagens e das suas necessidades: a mulher e a filha carentes de relações e de participação (pão, mesa, saúde, comunhão) e aquele homem e seus discípulos mais próximos (homens devemos mencionar) enfeitiçados pelo etnocentrismo cultural judaico, mas agraciados pela capacidade de ouvir e, mesmo na discordância, a superar sua suposta superioridade e permanecer no diálogo até o fim. Pode ser que aqui novamente haja um alerta para a comunidade de que abertura para novas relações, escuta espiritual e vocacional, solidariedade, senso de eqüidade e partilha transformam desencontros em encontros de amor e vida e previnem doenças e morte, como já mencionado anos antes por Paulo quando condenou a prática da ceia na comunidade de Corinto (1Cor 11,28–32: há muitos doentes, fracos e alguns já morreram porque a comunidade não é solidária, por isso a exortação de examinar-se para não incorrer em condenação de si próprio com essa atitude).

6. Precisamos “desaprender”. “Deus escolheu aquilo que no mundo é louco, até mesmo as coisas que não são, para reduzir a nada as coisas que são” (1Cor 1,27–28). Jesus desaprendeu algo para aprender e apreender muito mais. Encontros entre culturas diferentes provocam esse resultado quando estamos verdadeiramente abertas/os e dispostas/os a nos movimentar nessa direção, de desapego das nossas verdades, tradições, certezas e nos atentarmos para a atitude absolutamente fundamental de nossa espiritualidade da libertação: ouvir e obedecer ao Deus que da vida e veio até nós num mundo plural e diverso.

4. Esperança e militância — cura e salvação

Em muitos textos onde aparecem mulheres e estrangeiros, também aparece essa insistente conexão com militância. Elas são apresentadas como lutadoras, transgressoras, perenes no movimento de busca de seus direitos, apesar de sua situação de vítimas do sistema político-econômico ou do sistema religioso (seja no tempo de Jesus, seja no tempo da organização das igrejas nas décadas seguintes ou nos dias de hoje). O estrangeiro, o Outro é sempre sinal de que Deus tem algo a dizer. Quando algo é diferente é necessário aprender para decidir se vamos apreender ou não. Por isso que religião é relação amorosa e desprovida de verdades absolutas para que possamos transformar e viver nosso caminho de busca de Deus de maneira absoluta, porque só ele é absoluto.

Essa mulher siro-fenícia é um exemplo desses textos. Ela não hesita em buscar ajuda. Ela descobre o paradeiro desse homem, provavelmente já afamado por seus milagres e suas palavras, e movimenta-se em direção a ele que, segundo o redator do evangelho, não queria ser encontrado.

Não sabemos muito da filha dessa mulher. O texto só nos informa que ela estava possuída por espírito impuro (ou espírito de impureza). O que isso significa não é muito certo. Na tradução grega da Bíblia Hebraica, chamada Septuaginta, esse termo “espírito de impureza” era usado para designar pessoas que não estavam em situação de pureza ritual/moral. Já no Segundo Testamento está associado a estar com o demônio. Em várias discussões pensou-se que essa menina poderia estar sofrendo de algum mal, por exemplo da fome, da violência, da exclusão de mesa por causa da religião judaica. Parece que essa mulher quis de alguma forma entrar para o “grupo ampliado” de Jesus. Mas Jesus a rejeita, dizendo que ele só veio para os filhos. E que não vai abrir-se (tirar dos filhos) para outras culturas.

Podemos pensar que o texto esteja falando, na década de 70–80 (quando a redação final do evangelho é “terminada”), de concentração de recursos, de falta de comida, de violência. Lembremos que nos anos 70 na Judéia ocorreu uma grande guerra. Também no império como um todo isso deve ter repercutido. No tempo de Jesus era a mesma coisa. Muitos movimentos messiânicos, muita interferencia de Roma em termos militares e de governança da região. Muita gente excluída na religião de Jesus do acesso a Deus por causa das impurezas rituais/morais. Há muita energia sendo gasta há algum tempo para que haja hegemonia de língua, idioma, moeda, ritual, obediência.

Voltando aos anos 70/80, podemos localizar esse texto na discussão que deva estar ocorrendo nas igrejas sobre a participação na mesa (eucaristia), considerando que a eucaristia já era prática ritual nas igrejas e que já havia uma certa hierarquização de ministérios. Também pode ser que haja um problema sobre a participação de mulheres dentro da comunidade. As duas personagens do texto são duas mulheres. Enquanto “os filhos” poder ter o pão, “a filha” fica excluída sem acesso à Jesus/mesa. Certamente há um conflito entre culturas diferentes convivendo sob o mesmo projeto. Há uma cultura com a espada e a verdade e uma outra que deveria se submeter e relegar-se a sua insignificância. Mas tanto na Biblia quanto na América Latina esse projeto não deu certo. O espírito de Deus, que não pode ser controlado, subverte a ordem, cria nova ordem e estabelece novos caminhos para serem trilhados.

Mas a natural insistência dessa mulher muda a cena. Ela não se abala com a ofensiva resposta de Jesus. Ser rejeitada e ainda chamada de “cachorrinha”. Que abuso deste homem! Ele precisava aprender algo de uma mulher, de uma mulher siro-fenícia (que não era da sua religião, de sua cultura, de seu idioma nativo e nem nacionalidade) e de sua filha com espírito de impureza. Para nossa surpresa (e é uma pena que ficamos ainda surpresos com gente que é capaz de mudar de opinião) Jesus é co-movido (ele move-se junto com ela e por causa do que ela disse e fez para a teia de palavras e significados que ela propõe e tece). Ele já está no seu ambiente natural (Tiro e Sidonia) e ainda move-se para o lado dela com seu corpo, começa a olhar o mundo a partir do contexto dessas duas mulheres. Os dois, na conversação/conversão, mudam o rumo de nossa história.

Na relação de escuta atenta da outra pessoa há salvação e cura, há mudança de teoria e de fala. As palavras, antes cheia de morte e exclusão, tornam-se certeza de vida e de acolhimento. Na relação atenta há cura. Jesus, a mulher e a menina foram curadas dos muros da exclusão e da fome (de pão e da Palavra).

A mulher não arredou o pé quando foi rejeitada. Que exemplo! Ela não estava pedindo permissão. Ela acaba comunicando a Jesus que ele está equivocado na sua compreensão do mundo. Porque mesmo que o pão seja “só para os filhos”, o pão não é propriedade “dos filhos”… migalhas (que também é pão) caem no chão, e os “cachorrinhos” (os estrangeiros) podem e vão pegar. Eles (todas as pessoas) têm direito ao pão nosso de cada dia.

A igreja de Deus é exatamente (ou deveria ser) essa espaço político e religioso onde aprendemos que há direitos que são inalienáveis, ou seja, ninguém tem o direito de nós negar. Aprendemos com essa mulher que a cura da menina necessita do movimento popular de correr atrás de possibilidades e de não intimidar-se com possíveis “nãos” pelo caminho, mesmo que sejam “nãos” de homens autoritários e exclusivistas. Pode não ser culpa deles. Precisam de aprender que mulheres e crianças são portadoras de palavras que curam e que transformam.

“Pelo que você disse, vá”… a menina foi curada pela Palavra dita. Por isso precisamos tomar cuidado quando encontramos gente, movimentos, instituições que nos proíbem de “dizer a palavra”. Aprendemos que temos que transgredir quando certas pessoas ou instituições nos proíbem de dizer certas coisas. “Pai, afasta de mim esse cálice (cale-se)”… “Seja feita segundo a sua vontade”.

6. Bem dizer

Sabemos que a Palavra tem poder. E que nós somos curandeiras da palavra. Para continuar com esse ministério, olhando para nosso texto de estudo, adotamos como exemplo de movimentos de cura as atitudes dessa mulher. As palavras e atitudes daquele homem não tiveram a força suficiente para a cura. Foi o que a mulher fez/disse que desencadeou o processo. Ele fez parte, ele foi capaz de abandonar-se de suas convicções e abraçar outras. Ele estava disposto, aprendeu dela, a relacionar-se. Ele não tinha a verdade absoluta. Alguém tem?

A mulher devolveu para a comunidade algo que poderia ser que estava sendo esquecido. Esqueceram de movimentar-se, ir a luta, buscar, transgredir ou fazer transgredir quando o assunto é de vida ou morte, ou de amor e paixão.

Ela voltou para casa, conforme Jesus havia dito (bendito/bem dito). A vida continuou. Jesus retomou seu caminho. A comunidade teve que repensar sua tentativa de exclusivização. Jesus não é somente para os “filhos”. O caminho de cura/salvação é aberto a todos.

Quero terminar minha contribuição afirmando o óbvio. Esta minha colaboração é UMA colaboração e uma possibilidade de entrar e sair do texto na tentativa de ser fiel a primeira palavra de Deus em primeiro lugar: a vida e ao contexto em que ela se sustenta. Mas também minha leitura, latinoamericana, brasileira, mestiça quer ser fiel ao texto que é tecido vivo, úmido, falante e desconfortável… Compartilho as intuições de minha amiga teóloga, historiadora e biblista Nancy Cardoso de que a nossa leitura latinoamericana insiste bravamente numa espiritualidade auscultadora e libertadora que não pede o sacrifício do texto na redução de sua complexidade, nem abençoa o fetiche da religião do consumo, da dominação e do divã gratuito… mas aceita viver esta mística da desordem e do desconforto que movimenta a mente e o corpo e que ordena a pesquisa sem matar o texto. Eis o milagre! O texto se faz carne na realidade.

Esta realidade, caldeirão de lutas de classes e etnias, obriga o texto a mostrar seus conflitos: o campesinato periférico, os imperialismos políticos e religiosos, os abusos de poder, as intolerâncias sexistas e religiosas, o cotidiano da pobreza, da fome, da doença e da loucura da maioria da população do mundo, a marginalização e violência especialmente contra mulheres e crianças. Também insere-se neste palco de conflitos os bons resultados como a criatividade, a ousadia, a imaginação, a capacidade de encontrar-se e de conviver, a perenidade de relações ainda possíveis.

E nossa leitura escolhe, prefere, elege sim … a diferença é que nós dizemos isso aqui. Sem medo de ser feliz! Assume as perguntas da realidade, assume o suor do método — qualquer um! — e o suor da/o biblista que equilibra história, arqueologia, antropologia, geografia, espiritualidade e teologias… Na tensão entre gravidade (método) e graça (espiritualidade), a religião de Jesus e seu evangelho se faz carne e habite sensualmente entre nós: eternamente humano e divino. Deus conosco! Que o Senhor esteja sempre com vocês!

“Ele mantém para sempre a verdade (não esquece):

fazendo justiça aos oprimidos, dando pão aos famintos; O Senhor liberta os prisioneiros”

Sl 146 (145), 6c-7

Referências

BEOZZO, J.O. http://ciberteologia.paulinas.org.br/ciberteologia/wp-content/uploads/2009/05/ciber02_vaticano.pdf

VV.AA. A Bíblia na mutação Cultural. Revista Estudos Bíblicos n. 61. Vozes. Petrópolis. 1999.

VV.AA. Jesus Histórico. RIBLA n. 47. Vozes. Petrópolis. 2004

GAMELEIRA, S.A et JUNIOR, J.L.C. Evangelho de Marcos: Vol. I: 1–8 — Refazer a casa. Comentário Bíblico. Vozes. Petrópolis. 2002

ZORGDRAGER, H. et OOSTERBROEK, H. Reading the Bible across the cultures. Reflections on empirical hermeneutics, interculturality, Holy Scripture. Proceedings of the Symposium held on June,12, 2008, Amsterdam. Netherlands. 2009.

[i] Paulo Ueti, teólogo, biblista, da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, trabalhando para Anglican Alliance e Theological Department for Theological Education na Comunhão Anglicana, da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica — ABIB, membro da SBL Society of Biblical Literature, membro do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos — CEBI. Contato: pauloueti@gmail.com

--

--

Paulo Ueti

Bible Scholar, Anglican Alliance Facilitator, Researcher on Biblical Studies, living in Brasilia — Brazil most of the time, traveling a lot.