“Em verdade te digo que hoje mesmo estarás comigo no paraíso”.
Meu corpo é o resultado de um enorme feitiço.
E os feiticeiros foram muitos:
Pais, mães, professores, padres, pastores, gurus,
Líderes políticos, livros, TV.
Meu corpo é um corpo enfeitiçado:
Porque meu corpo aprendeu as palavras que lhe foram ditas,
Ele se esqueceu de outras, que agora, permanecem mal… ditas…
Rubem Alves

Neste dia de hoje celebramos sentimentos ambíguos, as vezes confusos, assim como é confusa toda forma de amor. Não há certezas nem verdades absolutas. Há desejo, desencontros, alegrias, tristeza, dor, morte. E ressurreição. Porque amar é estar grávidas e grávidos de novidades, transgressões, aprendizados e desapegos. É insistir resilientemente no caminho e, conforme Romanos 4:18, mesmo contra “todas as esperanças, esperar” alertas para o que está em nossa frente, dentro de nós e o que há de vir.
Hoje celebramos a Sexta-Feira da PAIXÃO. É assim que tradicionalmente damos nome e significado a esse dia de dor e sofrimento, que foram consequências do amor incondicional de Deus, em Jesus, por toda a humanidade e pela nossa casa comum. Em inglês chama-se Good Friday, ou Sexta Boa. É dia de não deixar esquecer as consequências de amar. É perturbador. Essa sexta feira perturba sistemas estabelecidos (impérios, governos democráticos, normas sociais, tradições solidamente estabelecidas, estruturas e cânones eclesiásticos).
Este texto que lemos lembra que Jesus foi crucificado, e depois assassinado pelo império com a bênção dos líderes da religião que Jesus professava, juntamente duas pessoas. Costumeiramente chamamos de dois ladrões, um bom e outro mal. No tempo de Jesus, ladrões comuns não eram crucificados publicamente. Somente recebiam essa pena capital pessoas de alta periculosidade para o estado, religião ou sistemas sociais estabelecidos.
Um deles, de mentalidade imperialista, pensando que Jesus era um Rei (tipo Davi) que tinha superpoderes e só pensava nele mesmo em muitos momentos (sim esse foi Davi, muito preocupado com ele mesmo e com ‘os seus’) insulta Jesus e o ridiculariza sugerindo que ele se salvasse e salvasse os dois. O outro, ao final entendeu quem era esse homem, esse Messias, e se solidariza com ele.
Mesmo no sofrimento (de cruz) há solidariedade e compaixão. Um deles sentiu compaixão por Jesus e o defendeu. Jesus reconhece essa atitude e esse sentimento (expressos em palavras e ações desse homem) e o recorda que “hoje mesmo estará comigo no paraíso”.
Essa memória de hoje, essa palavra que agora meditamos nos deve ajudar a fortalecer nossa fé na misericórdia incondicional de Deus, expressa por Jesus. Esse desejo profundo de querer que as pessoas estejam com ele, porque ele está com as pessoas. Ele é Emmanuel, o Deus Conosco. Em tempos de pandemia sempre ressurgem com força as teologias que afirmam que as doenças e os sofrimentos são castigo de Deus por alguma ação, pensamento ou palavra má expressa (Jo 9:1–5).
Para Jesus o sofrimento está intimamente conectado com o exercício da paixão. E o sofrimento não é infligido por Deus. Quem duvida e quem precisa “testar” as pessoas é o Diabo (Jó 1–3). Deus confia e promete estar sempre ao lado do povo em seu sofrimento.
“Creio na ressurreição do corpo…” Com essa afirmação, repetida incontavelmente nas igrejas cristãs de todo o mundo e tão cara para fé e a prática/reflexão de tantos corpos, queremos continuar no caminho da insistência na vida, da luta política cotidiana, das teologias transgressoras, assim como o amor, das espiritualidades e sexualidades plurais, das dores e das metástases, das inquietudes e rebeldias emergentes, da escuta atenta e comprometida do corpo da terra e dos corpos da natureza que dançam, mas também gemem e sofrem, na “gira” divina.
A experiência da divindade que fazemos no cotidiano é complexa e contraditória, assim como o é a vida de amor e violência na qual estamos todos/as inscritos/as. O verbo se faz gente, foi assassinado pelo império, mas é gente que é feita de barro (Adam de Adamah), corpos humanos e natureza intrinsecamente conectados e interdependentes. Corpos violentados, abusados sexualmente como o foi Jesus, mas também corpos onde experimentamos prazeres eróticos explodindo em alegrias e desejos de quero mais. Isso é o Batismo, desejo de sempre querer mais e não abandonar o caminho, por mais difícil que ele seja. Por quê? Porque não estamos sozinhas/os. Estamos juntas/os.