Conspirando através das narrativas: “não se conformem com esse mundo…”
Porque Deus viu que tudo era belo
Paulo Ueti
(apresentado noVII Congresso Latino-Americano de Gênero e Religião: Coragem — Criatividade — Esperança, realizado entre os dias 24 e 27 de agosto, na Mesa Temática “Identidades de gênero, diversidade sexual e narrativas bíblicas”)
Olá a todas vocês, um olá especial as minhas companheiras de diálogo aqui. Desejo as energias das mais boas nessa jornada de diálogo, provocação e prazer na qual nos encontramos. Agradeço o convite para estar nessa conversa e partilha provocadora e intencionalmente perturbadora. Perturbar o estabelecido me parece parte intrínseca da vocação cristã. Como nos oferece Paulo em sua carta aos Coríntios
“Mas Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir as sábias; e Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes; e Deus escolheu as coisas vis deste mundo, e as desprezíveis, e as que não são, para aniquilar as que são; para que nenhuma carne se glorie perante ele.” (1 Coríntios 1:27–29)
Eu venho de uma família mista, diversa. A realidade das diversidades, e das narrativas sobre isso, me acompanha desde que nasci. Minha mãe é de tradição japonesa e meu pai italiana. Eu nasci brasileiro numa megalópole chamada São Paulo cheia de mosaicos em todos os níveis. Minha família consanguínea não era religiosa e eu vim a conhecer religião por livros e enciclopédias, mas também pela influência que ela tinha e tem no ordenamento da sociedade, no estabelecimento de normas e inclusive no ordenamento jurídico no qual estamos inseridas. Relacionalmente conheci a religião, as igrejas cristãs, quando adolescente, porque minha mãe achava que eu precisava de conserto, pois não era uma pessoa de muitas relações sociais. “Igreja ajuda” [sic] uma amiga de minha mãe avisou e é de graça. A última informação ganhou minha mãe e cá estou eu imerso nesse ambiente. Da física nuclear passei para a filosofia e depois para a teologia. Já adolescente conheci o CEBI, o Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos. Participar das atividades do CEBI me formaram militante e um teólogo que quer se reconhecer aberto, feminista, ativista e ecumênico.
Eu também sou um homem branco, cisgênero, gay e de classe média. Fui privilegiado pela minha classe social e cor de pele. Sempre gostei de estudar e sempre mesclei na vida ativismo político e estudo. Aceitei o conselho de um bispo amigo que me disse que ‘ficar só na igreja adoece’. Desde muito cedo me encantei pela Bíblia e o CEBI, e sempre estive conectado com as lutas camponesas, junto com a Comissão Pastoral da Terra, depois o Movimento Sem Terra e a Via Campesina Internacional, depois meu curso de teologia e depois ainda minhas conexões ecumênicas no Conselho Mundial de Igrejas, me inseriram, ou quem sabe despertaram algo que já estava ali em mim, na jornada curiosa e persistente pelo caminho das possibilidades (ser curioso, estar presente e reimaginar sempre) e não das certezas burras e antidialógicas. Penso que fui impactado pelo chamado da Carta de Paulo aos Romanos 12;2, a não me conformar com “este mundo”, mas ser constantemente transformado na mente (no jeito de compreender) e no espírito (no jeito de agir) para continuar tentando fazer a vontade da divindade na qual professo minha fé.
No Livro de Oração Comum de minha igreja (a Igreja Episcopal Anglicana do Brasil) temos um credo que diz assim:
Cremos em Deus; Cremos na força das pessoas pobres, Na audácia das pessoas poetas, Na ousadia das profetas, Na inspiração das artistas. Cremos em Jesus, Cremos na humildade para servir, Na coragem de transformar, Na alegria de celebrar, No respeito às diferenças, No pão para toda mesa, No conforto para toda tristeza, Cremos no Espírito, Cremos na esperança de recomeçar, Na beleza do gesto solidário, Na justiça para toda opressão, Na compaixão diante da dor, No amor, dádiva divino-humana. Amém.
Não é demais enunciar novamente que identidade sempre tem que ser tratado no plural. Ela é algo designado mesmo antes de nascermos, mas ela é construída ao longa da vida por diferentes caminhos e contextos. E esse debate sempre existiu. Parte da humanidade, nas suas condutas sociais, as práticas eróticas ou conformações fisiológicas-sexuais ,frequentemente desafiaram e continuam desafiando o binarismo de gênero que domina nosso sistema de pensamento e significação (cf Estela SERRET)[1]. Se queremos ou não, se aceitamos ou não, a realidade desafia o conceito. Por isso é sempre saudável entender nossos conceitos e certezas como relativas ou inseridas no mundo das possibilidades: pode ser que agora é assim, mas pode ser que possa ser de outro jeito.
Como biblista latino-americano e forjado nos caminhos das teologias da libertação, e muito influenciado pelas minhas amigas e colegas feministas, entendo que a história, a experiência que fazemos e os nossos corpos (incluo aqui o território em que vivemos) são um lugar privilegiado da revelação. Fazemos teologia intencionada e localizada a partir das nossas experiências e não conformamos as nossas experiencias a partir do fazer teológico.
A teologia não vem do nada ou de alguma posição neutra, mas já está situada em contextos sócio-políticos que estão implicados em estruturas e estratégias de dominação ou de emancipação. A teologia também pertence a contextos retóricos implicados na luta pelo significado.3 Tanto os contextos sociopolíticos quanto os contextos retóricos têm implicações nas lutas das pessoas pela identidade e voz, bem como em seu poder de participar do domínio público, onde as questões são discutidas e disputadas “em público”.[2]
A teologia, linguagem que formam narrativas teológicas, está
sempre já implicada em múltiplos discursos e lutas. Um aspecto dessa implicação é que o que você vê depende de onde você está, ou seja, a teologia é feita de perspectivas particulares e não deve fingir ser de outra forma. A teologia produz conhecimento que está implicado, situado e perspectivado. [3]
E uma parte das experiências que temos é marcada pelo reconhecimento da quase ausência de homogeneidade. A vida é plural naturalmente. A diversidade em tudo é o pão nosso de cada dia e a água que sacia a sede. Quase uma afirmação de fé.
Quando vamos para o texto bíblico é sempre bom lembrar que ele é uma narrativa. Ele apresentado como uma linguagem sobre a experiência de Deus e da revelação dessa divindade em diferentes momentos da história e geografias no mundo. Assim como nossos corpos, os textos sagrados são uma linguagem, são uma tentativa de expressão e nunca a plena expressão de si mesmos.
Fiorenza chama a atenção para as interconexões entre conhecimento e poder no trabalho nos discursos acadêmicos em geral e na teologia em particular. Ela segue Foucault nisso, deixando claro também que a linguagem é em si mesma uma forma de poder.4 Por isso: “A linguagem não é um mero veículo de transmissão do contexto social e histórico, mas o produtor de sentido”.5 O discurso, que inclui tanto a linguagem quanto as práticas, “compreende a textualidade dos textos como uma construção e não como um espelho da realidade pré-existente”.[4]
Tem lugar, tem intenção, tem agenda política, tem impactos diversos e está em constante estado de mutação.
Como já disse Maria da Conceição Passeggi, num texto publicado por Coisas do Gênero: Revista de Estudos Feministas em Teologia e Religião:
Nos últimos trinta anos, vemos delinear-se nas ciências humanas e sociais um interesse cada vez maior pela narrativa, embora como um horizonte de pesquisa desconcertante para o universo científico. Certamente as inquietações nascem da longa tradição da narrativa como objeto (con)sagrado dos estudos literários e de linguagem, que evidenciam aspectos relacionados á subjetividade, à ficção, à estética, à emoção considerados avessos à cientificidade, mas de um valor inestimável para a compreensão do humano. Para Barthes, a narrativa “começa com a própria humanidade” e sua diversidade quase infinita é o indício de sua inquestionável universalidade. Têm especial realce para a história ocidental as narrativas bíblicas, jurídicas, literárias, históricas, infantis, ficcionais, anedóticas, jornalísticas, midiáticas, românticas, ideológicas, políticas, digitais, etc. Nós, humanos, continuamos a tecer cotidianamente as mais diversas narrativas para dar sentido ao que acontece e ao que nos acontece. De igual modo, vamos nos tecendo com elas e por elas”[5]
Ademais de ser uma (ou várias seria melhor dizer) narrativa, o mundo dos escritos bíblicos é um universo em disputa. Muitas vozes que pertencem a diferentes contextos estão se confrontando ali. A diversidade de corpos e de ideoteologias, conceito emprestado do amigo Gerald West, do Centro Ujamaa na África do Sul, navegam conjuntamente nesse mar revolto que é a Bíblia.
As narrativas estão ali, para serem encontradas, apreciadas, saboreadas e usadas. Elas são evidentemente um mosaico, uma colcha de retalhos, um mundo de tons e vozes diversas e nem sempre concordantes. É preciso uma aproximação ao conflito como chave hermenêutica para navegar nesse mundo das narrativas. Como literatura elas ao mesmo tempo estão conectadas com a realidade da qual falam / se referem e também às pessoas que as organizaram como memória, como instrumento político de influência em seus contextos.
Entendo que as narrativas desde seu início se desenvolvem como um labor hermenêutico. Sendo assim, elas se apresentam como um menu a ser degustado, a ser lido e interpretado. E ler e interpretar é um ato político intencional que influencia a transformação do bem comum.
Eu tento me despir do que aprendi
Tento esquecer a maneira como fui ensinado a lembrar
e raspar a tinta com a qual meus sentidos foram pintados,
para desembrulhar minhas verdadeiras emoções,
desembrulhar-me e ser eu mesmo, não Alberto Caieiro,
mas um animal humano que a natureza produziu,
Mas isso, (triste para nós que trazemos nossas almas vestidas!)
Isso exige um estudo profundo,
Um aprendizado de desaprendizado…
(Alberto Caieiro)
Este poema de Alberto Caieiro, uma das muitas pessoas de Fernando Pessoa, explica o processo de leitura e interpretação, de aprendizagem e desaprendizagem. A leitura não é apenas um ato de decodificação de sinais, mas também um ato relacional que muda tudo quando ela é iniciada.
Eliana Yunes, uma pensadora literária, afirma que:
“o ato de ler não corresponde apenas à compreensão do mundo do texto, seja ele escrito ou não”. A leitura carece da mobilização do universo do conhecimento do outro — do leitor — para atualizar o universo do texto e fazer sentido na vida, que é o lugar onde o texto realmente está. Aprender a ler é conhecer diferentes textos produzidos em diferentes esferas sociais (jornalística, artística, jurídica, científica, didático-pedagógica, cotidiana, midiática, literária, publicitária, entre outras) para desenvolver uma atitude crítica, ou seja, de discernimento, que leva a pessoa a perceber as vozes presentes nos textos e a perceber-se capaz de tomar a palavra diante deles”[6]
Quando lemos, nos relacionamos com um universo amplo e complexo e não simplesmente com uma única realidade. Nunca vamos ao texto ou à realidade sendo inocentes e neutros. Essas qualidades não existem entre nós quando se trata de nos relacionarmos com os tecidos dos quais fazemos parte (vida e texto escrito). E essa ordem é importante: primeiro a vida, depois a realidade (o que entendemos de vida) e depois o texto escrito. Penso que a realidade não é a mesma coisa que o real. A realidade é produzida e é o que conseguimos narrar e/ou entender do que é supostamente o real. O que conseguimos assimilar ou perceber. Ter sempre nossa perspectiva e compreensão do que experimentamos, vemos ou lemos.
Portanto, sempre nos perguntamos por que fazemos teologia, para quem fazemos teologia (certamente não para Deus)? E qual é nossa agenda política (de influenciar e ordenar o mundo)? Qual a agenda das narrativas, e aqui falamos das narrativas bíblicas e como nós, agentes políticos de influência e transformação abordamos as mesmas, de uma forma que produza vida e justiça,
Historicamente, a religião, sustentada por suas narrativas, tem sido um dos agentes mais poderosos para facilitar a mudança no comportamento, nas normas sociais e nas atitudes das pessoas. Sabemos que os atores religiosos, aquelas/es que produziram as narrativas bíblicas e aquelas/es que as interpretam hoje, desempenham um papel estratégico para influenciar e estabelecer (ou mudar) valores, comportamentos e normas em qualquer sociedade. O discurso religioso, as teologias, são instrumentos de criação de vida, bem como de opressão e morte.
Acercar-se das narrativas bíblicas exige de nós o reconhecimento que a identidade é plural e que a diversidade é intrínseca, e isso se aplica as nossas sexualidades, que se configuram em expressões públicas do nosso ser interior.
E sigo no desafio que já foi lançado aqui: como usar as narrativas intencionamente para reconhecer as diversidades sexuais e diversas identidades de gênero no sentido de desestabilizar sistemas hegemônicos e concepções hegemônicas de gênero e sexualidade.
[1] Ver: https://bit.ly/3B8IIH6 acessado 20 agosto 2021.
[2] Monro, Anita. Teologia Pública e o Desafio do Feminismo (Gênero, Teologia e Espiritualidade) (p. 36). Taylor e Francis. Edição do Kindle.
[3] Idem
[4] Idem
[5] Passeggi, M. A pesquisa (auto)biográfica: por uma hermenêutica decolonizadora. Revista Coisas do Gênero, São Leopoldo, RS. P. 304–305, agosto dezembro 2016.
[6] Yunes, E. Tecendo um leitor: uma rede de fios cruzados. Curitiba: Aymará, 2009. P. 9