A atualidade da Leitura Popular da Bíblia

Paulo Ueti
9 min readJan 9, 2023

Paulo Ueti

[Apresentado no Simpósio sobre A Atualidade da Leitura Popular da Bíblia, promovido pela EST — Escola Superior de Teologia, São Leopoldo, RS, Brasil em novembro de 2022. Evento de encerramento do Ano Milton Schwantes e a Leitura Popular da Bíblia]

Boa noite para todas vocês.

É uma honra, responsabilidade e um prazer erótico (que seduz) e herético (que escolhe) estar nesse círculo de memória de Páscoa e transgressão de gente tão linda e comprometida de diferentes maneiras com a transformação de nossas mentalidades, em desafiar corajosamente nossos esquemas patriarcais, capitalistas, teológicos kyriarcais (como bem forjou o termo Elizabeth S Fiorenza) que sustentam sistemas de privilégios, a meritocracia, exclusões, sofrimento e morte. Quero celebrar que tantas de vocês aí na sala e que nos assistem me formaram. Vocês estão em mim. E para agradecer e cumprimentar essa hospitalidade de hoje, em certos círculos indígenas em muitas culturas dizemos “Eu te vejo”. E espero que vocês me vejam também.

Continuo honrado mais ainda por estarmos na herança, inspiração, conspiração e carinho do amado Milton Schwantes. Milton foi uma das minhas primeiras inspirações no caminho de juntar minha vocação de militante de direitos humanos, de direitos por terra e saúde, por igualdade de gênero e contra qualquer tipo de violência e minha vocação de teólogo, alguém que se apaixonou pela Bíblia e pelos estudos e pesquisa bíblica desde muito jovem, através do CEBI. Conheci Milton na cozinha do CEBI, quando eu tinha meus 14 anos de idade. Conheci a Leitura Popular da Bíblia, essa mesa de tantos pratos diferentes com diferentes temperos, texturas e sabores, com o objetivo transgressor e erótico de seduzir, conectar, alimentar e experimentar e expandir prazer e vida plena. Rubem Alves teve grande influência em meu crescimento tanto no CEBI como como teólogo profissional depois.

Eu sou Paulo Ueti, do CEBI desde os meus 14 anos, hoje tenho 53. Teólogo que se enveredou pelos caminhos da pesquisa bíblica, e por causa do sistema que trabalha para gente como eu, pude estudar bastante, comprar livros, arranjar tempo para ler e escrever. Sou mestiço, bem brasileiro. Aqui no meu país sou considerado branco, mas como viajo muito já experimentei e experimento racismo, preconceito e falta de acesso por ser “latino”. Na minha igreja meu serviço é cantar. Sou congregante da Catedral Anglicana de Brasília. Já fui professor tempo integral de Bíblia, trabalhei por 25 anos com o Movimento Sem Terra no seu escritório nacional, entre outras coisas. Há 10 anos trabalho para o escritório global da Comunhão Anglicana em Londres (mais um ponto dos muitos dos privilégios que navego). Nasci numa família de classe média e decidi, desde que encontrei a religião (aos 13 anos) usar meus privilégios para estar a serviço da gente empobrecida e excluída, para ser ponte entre diferentes idiomas, conspirar com diferentes grupos e gentes, refazer caminhos de reconciliação com o meio ambiente e encontrar família fora da minha família consanguínea. Afinal, quem é minha mãe e quem são meus irmãos e irmãs? Pode ser que eu tenha sido muito literal nesse caminho.

O CEBI foi onde a Leitura Popular da Bíblia se tornou para mim meu cotidiano, como militante e como teólogo e biblista. No CEBI encontrei Milton e sua leitura militante com um caderno pequeno que saiu sobre Mateus 25 e sua relação com a política imperialista e violenta do governo dos Estados Unidos na época. Isso faz uns 35 anos ou mais. Como estou fora da minha casa há mais de um mês, não pude achar o livreto em questão para mostrar, peço desculpas. Também um dos cadernos do CEBI escrito por Sebastião Gameleira sobre a Vocação do CEBI está no meu coração desde sempre. Lembra que a vocação do CEBI ao praticar a Leitura Popular é uma vocação e uma leitura profética, portanto militante, política, transgressora, discordante de sistemas assassinos, opressores e que sustentam privilégios.

Nós lemos, estudamos e interpretamos (em diversos modelos, geografias e ambientes) para desafiar status quo, para incomodar, para desenvolvemos corpos, capacidades, mentalidades e organizações críticas e politicamente comprometidas com a vida para todas e com a vida no planeta. Por isso a Leitura Popular da Bíblia bebe do método ver-julgar-agir, deleita-se com a práxis da práxis, se embriaga com os círculos de mútuo aprendizado onde epistemologias coloniais, eurocentristas e de hegemonias brancas são deslocadas e repensadas, quando não intencionalmente destituídas de seu pórtico de norma e cânon.

A Leitura Popular da Bíblia se desenvolve como método primeiramente. Não é um curso (ou uma disciplina acadêmica) de ou sobre Leitura Popular da Bíblia, mas é uma prática a ser treinada e democratizada. Para as pessoas crentes e espirituais, ela é uma espiritualidade, um jeito de ver e ser no mundo. É, em nosso vocabulário moderno, expressão de relações ecológicas, de troca, onde ninguém ensina ninguém, a gente aprende juntas umas das outras e no caminho, nos processos. Confiar no processo, é uma frase que sempre é atual e um lembrete fundamental. Nem sempre com o mesmo ritmo e nem sempre com os mesmos instrumentos ou equipamentos de ajuda. Por isso, colaboramos, trabalhamos juntas na partilha de dons, capacidades, instrumentos e energias.

O Caminho de Emaús

A narrativa sobre o casal da comunidade de Jerusalém que vai para casa em Emaús depois de terem sido frustrados em suas expectativas de tomar o poder é paradigmática e uma das fundações bíblicas, teológicas e pedagógicas para a Leitura Popular da Bíblia. Esse conto também se torna o paradigma e a estratégia de como mudar o mundo e ser mudada por ele. E aqui o COMO é fundamental. Para algumas pessoas essa é uma das estrelas da obra lucana, o COMO, o caminho, o jeito. É entendido por muita gente nos anos passados como uma das fontes das nossas teorias de mudança. Mudamos o mundo:

1) tomando iniciativa: fundamento teológico estruturante, assim como Jesus nós tomamos a iniciativa e saímos de nosso lugar geográfico, epistemológico, espiritual e psicológico em direção ao outro, ao caminho; somos migrantes forçadas ou por vocação.

2) compartilhamos capacidades para ler o mundo: treinamos a consciência para ser crítica, abrimos um “terceiro olho”, aprendemos a profetizar; a capacidade de analisar a sociedade, as relações de poder, os sistemas se tornam lição primeira. Houve uma época em que se ensinava COMO fazer análise de conjuntura nos grupos de base, em claro desafio ao modelo de educação bancária que vomita informações e conhecimento. Houve uma época que se começava encontros compartilhando notícias do dia. Nos encontros do CEBI era costume comprar jornais e deixar para a leitura no café da manhã e usar isso para as liturgias, para as memórias subversivas que iluminariam o resto do dia e das leituras populares, que é um eufemismo aqui para política e transformadora, da Bíblia e da Vida.

3) Treinamos para fazer perguntas: treinamos para sermos pessoas fofoqueiras e inxeridas, que analisam tudo e se metem em todos os lugares, especialmente os lugares que foram sequestrados por qualquer elite existente ontem e hoje. Queremos saber do que vocês estão falando, queremos saber suas perspectivas, porque elas são fundamentais para planejar o caminho, construir ou buscar relações e valorar conhecimento local. Afinal, quem produz conhecimento? O que é científico?[1]

4) Aprendemos a calar para apreciar e ouvir outras vozes que não a nossa a nossa, outras visões que não as nossas. Reconhecemos que a outra pessoa ou a outra realidade tem algo a dizer que deve ser ouvido e acolhido. Ou apreciamos o silencio, que também é uma forma de comunicação. Fomos aprendendo a ouvir o que não foi dito, a ver o que não está ali, a perceber quem não foi convidada para a mesa ou quem não tem o acesso que certas pessoas têm. É preciso silêncio mental, espiritual e físico para isso.

5) Aí vamos para compartilhar memórias e conhecimentos sobre e a partir da Bíblia. Aprendemos a entender a Bíblia como lugar de luta de classes e de projetos, de agendas diversas. Aprendemos a entender a Bíblia mais como um mosaico disforme e em constante mudança. Cada vez que entramos nesse mundo nos percebemos e percebemos coisas diferentes. E se entramos juntas, como comunidade interpretativa, vamos descobrindo lugares e possibilidades que sozinhas não teríamos conseguido. Mas é preciso espírito de colaboração. É preciso que reconheçamos que a pluralidade de olhares, corpos, contextos, idiomas, linguagens, interesses tem lugar. É preciso ter agenda política clara e definida. Messias Rei ou Messias Servo Sofredor. São duas práxis diferentes e incompatíveis.

6) A vocação de compartilhar toma conta da gente e nos tornamos hospitais, lugar de acolhimento para a cura e para o cuidado. É preciso fazer algo. Somos convocadas a fazer algo. O que Deus quer que a gente faça? Os encontros sempre terminavam com essa convocatória. Nunca terminava com a pergunta sobre o que sabemos mais sobre esse texto ou sobre essa formulação. Ou sobre as possibilidades tradutivas, ou sobre quiasmos e paralelismos. Claro que isso é importante, mas nos círculos de leitura popular o grande objetivo era experimentar conversações e conversões para a militância e para o pensamento crítico que colabora com nossa teoria da mudança.

7) Por isso celebramos a volta para Jerusalém, para a comunidade que interpreta e milita junta como expressão do parentesco com a divindade que se encarnou e segue conosco. A comunidade se torna essa expressão.

Possíveis descaminhos

Recupero essa memória óbvia para termos parâmetro para um olhar crítico sobre a Leitura Popular da Bíblia e seus diferentes caminhos. Forma e conteúdo são estruturantes de nosso caminho de transformação. Arquitetura e linguagem são parte da estratégia de mudanças. Elas expressam as mudanças que queremos ver em escala maior.

Chamo de arquitetura o modo como construímos o processo da Leitura Popular, os passos, o planejamento do que queremos que acontece e do que queremos que não aconteça, a organização do espaço, a facilitação (que infelizmente ficou em desuso e virou assessoria, que rapidamente se transforma em educação bancária).

A linguagem é construtora do mundo. Ela tem o poder de criar e destruir, moldar e transformar. Ela é mais do que o idioma, ela é o conjunto de diferentes códigos pelos quais comunicamos e nos comunicamos.

Nesse desenvolvimento de décadas a Leitura Popular se tornou também uma disciplina acadêmica. Há cursos sobre a Leitura Popular da Bíblia, as vezes dados na mais clássica arquitetura da educação bancária criticada por muitas pensadoras, especialmente por nosso Paulo Freire. Muitos cursos de Leitura Popular da Bíblia são palestras bem elaboradas e com muitas notas de rodapé. Também necessário e muito útil para nossos caminhos acadêmicos. Mas é bom reconhecer que é assim. As vezes tem até grupos de trabalho com algumas perguntas. Da urgência da militância passou-se em muitos ambientes (nem sempre como adição, mas como substituição), mesmo dentro das atividades do CEBI, para o discurso sobre a militância, quando isso acontece. Aqui não estou generalizando, de forma alguma. Estou apontando um outro caminho que a Leitura Popular tomou que é para nossa reflexão.

Eu penso que a Leitura Popular da Bíblia se alimenta de boas exegeses e hermenêuticas, mas boas exegeses e hermenêuticas não são necessariamente expressões da leitura popular da Bíblia em sua vocação, método, estética e arquitetura. Precisamos desses dois caminhos juntos para continuarmos nosso caminho de conspiração para a transformação do mundo.

Portanto penso que a Leitura Popular da Bíblia está mais atual do que nunca. Aqui utilizo do meu privilégio de interpretar. Estou lidando com o título da minha fala em termos de relevância da Leitura Popular para hoje. Deixo deliberadamente a possibilidade do título da minha fala se referir ao “estado da arte” da Leitura Popular de hoje, o que requereria uma pesquisa que não fiz, nem tenho condições no momento de me dedicar, mas fica o desafio para alguém fazer isso. E publicar.

A leitura popular é absolutamente necessária, como arquitetura, engenharia e processos de conspiração para mudanças e enfrentamento dos fundamentalismos políticos alimentados pelos fundamentalismos religiosos. Penso que precisamos reconstruir círculos hermenêuticos onde as pessoas não treinadas em teologia ou exegese tenham protagonismo, onde processos de interpretação comecem com elas e a partir delas. A maiêutica é mais necessária do que nunca. Treinar perguntar. Exercitar e cultivar a curiosidade como instrumento privilegiado de entender o mundo e a Bíblia, para que entendendo a Bíblia transformemos a nós mesmas (nossos olhares e percepções e nosso lugar de militância).

Termino com uma bênção da perturbação:

Que Deus te abençoe com desconforto,

Com as respostas fáceis, meias verdades,

E relações superficiais,

Para que você possa viver

Na profundidade do seu coração.

Que Deus te abençoe com indignação

Em relação à injustiça, opressão,

E exploração das pessoas,

Para que você possa trabalhar para que haja

Justiça, liberdade e paz.

Que Deus te abençoe com lágrimas,

Para derramar com aquelas pessoas que sofrem de dor,

Rejeição, fome e guerra,

Para que você possa estender sua mão

Para confortá-las e

Para transformar sua dor em alegria.

Amém.

[1] Recomendo a leitura: Rubem Alves. O que é científico? Edições Loyola, Rio de Janeiro, RJ, 2007; Rubem Alves. Entre a ciência e a sapiência: O dilema da educação. Edições Loyola, Rio de Janeiro, RJ, 1999.

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Paulo Ueti

Bible Scholar, Anglican Alliance Facilitator, Researcher on Biblical Studies, living in Brasilia — Brazil most of the time, traveling a lot.